terça-feira, 18 de novembro de 2014

Medo de avião - Autor: Dilermando Cardoso

Por mais que as companhias aéreas façam propaganda, garantindo que avião é o meio de transporte mais seguro do mundo, como verdadeiro caipira pé de pombo - até roxo de tão vermelho - ali das bandas do Engenho do Ribeiro, prefiro viajar pisando na poeira ou no barro dos caminhos. E não é por ignorância, nem superstição.

Embora desacredite de fadas e bruxas, tenho por todos os seres alados e etéreos respeito e reverência – não costumo abusar da sorte. Porque vai que existam realmente... Ainda mais que me acho meio predestinado, como se sobre minha cabeça houvesse um pára-raios invisível, atraindo determinadas coisas. Calma, afoito companheiro, não falo deste enfeite em forma de aspas gigantes, o popular chifre, que você está imaginando, não! É que se eu e outras mil pessoas estivermos, por exemplo, num comício na Praça da Matriz e um pardal que passe voando, naquela hora deixe cair sua titica: adivinha a cabeça de quem a merda vai carimbar – senão do degas aqui?

Por esta e outras muitas foi que ao programar com amigos, a passagem do réveillon numa capital do Nordeste, propus de imediato que alugássemos um ônibus para a viagem. Palpite infeliz. “– Vamos de avião!” Decidiram os outros, em uníssono. Assim, pela primeira e tomara que última vez na vida, fui arrastado - bêbado como peru na véspera do Natal - para dentro de uma destas aves metálicas que voam sem bater asas. Não me restou escolha: desistia do passeio ou tinha que embarcar uma semana antes: de navio ou trem de ferro correndo o sério risco de chegar lá passada a Festa de Reis.

Não desconfio em que parte da rota estávamos, mas aquilo voava alto pra cacete. E eu mais ainda! Foi quando a aeronave entrou numa tal zona de turbulência – puxa vida, até no céu tem putaria? E o avião mergulhou, ou caiu, ou despencou, sei lá como é que fala. Só sei que dos mais de sete quilômetros de altitude em que voava, o trem baixou para quatro ou cinco, em questão de segundos. A gritaria foi geral, com todo mundo acreditando que ia morrer. Para piorar a situação, naquele exato momento estava-se servindo a bordo uma gororoba fria e sem tempero – resultando daí uma tremenda meleca despejada pelas aeromoças em cima dos apavorados passageiros.

Mas, enfim, se aqui estou enchendo a paciência de algum leitor insone com este delirium tremens, foi porque depois da quase queda fatal os pilotos estabilizaram o avião acima das nuvens. E mesmo mortos de medo, sobrevivemos todos! Pelo resto da viagem foi só passageiro fazendo fila na porta do banheiro, para se lavar – e não apenas por causa da comida derramada, não...

Faz bem vinte anos, os diretores da Cooperativa Rural de Bom Despacho viajavam num Boeing para Porto Alegre – onde participariam de certo congresso –, quando ainda sobrevoando a Serra do Curral, nos arrabaldes da capital mineira, solícitas aeromoças distribuiram aos passageiros um folheto ilustrativo, de como comportar-se em ocasião de pane durante a viagem, inclusive ensinando a transformar os assentos das poltronas em coletes salva-vidas, caso o avião fizesse pouso forçado no mar. De perto da janelinha onde viajava, olhando aquele mundão de terra que se afastava quilômetros abaixo, com presença de espírito o sô Antônio Bernardes virou-se para o Nego Rodrigues, seu vizinho de cadeira, indagando cismado: “– Compadre, mas e se esse trem despenca no cascalho, como é que há de ser?
¨

Autor: Dilermando Cardoso - Bom Desapcho/MG
Publicação autorizada através de e-mail de 12/10/2011

A morte manda mensagens - Autor: Eurico de Andrade

Lá no sertão é crença comum que quando se vai levar um defunto para enterrar, não se pode parar. Pra nada. O morto tem que estar sempre em movimento. Sempre pra frente. Se os carregadores querem fazer mal a alguém é só parar com o defunto nas terras desse alguém ou na frente da sua casa. É desgraça na certa para o dito cujo. Por isso, donos de terra ficam de butuca quando passa carregamento de defunto. Até tiro dão se há ameaço de parar. Os carregadores têm que ser rapidinhos. Dar sossego depressa à alma do morto pra o distinto não ficar com raiva nem vagando por aí.

Pois bem. Num certo dia de janeiro, eis que morre o Deusdete. Homem novo ainda. Cufou por causa do barbeiro. Choro para os parentes e pesar entre os amigos. Defunto tinha que ser enterrado. Xico Vitrola, seu amigão do peito, arruma mais cinco para carregar o corpo do Deusdete até o cemitério de Tabuí. Caminho longo, de quatro léguas. Botam o defunto numa rede, onde passam uma vara bem grossa e, dois a dois, vão carregando o amigo até a cidade dos pés juntos. Cansaço muito. Diminuem um pouco a marcha e andam e andam. Tardezinha chegando. Pispiando a noite concluem que não dá para chegar a Tabuí antes do fechamento do cemitério. Negócio é descansar e continuar no rompante da manhã.

Cada um se ajeita como pode. Morto é deixado num canto. Puxam o ronco. Cansaço dos diabos. Só o Xico Vitrola, pesaroso com a morte do amigo e medroso como ele só, não consegue pegar no sono e fica apreciando a lua cheia, toda brilhosa, no céu. Lá pelas tantas, com os olhos ainda arregalados, vê uma coisa que o deixou de cabelos em pé. O morto parece que se levanta e vem caminhando em direção ao grupo de amigos, no rumo dele. Passa por cima de um, assim meio no ar. Passa pelo outro e mais outro, até passar pelo quinto. Tudo muito de leve, parecendo fantasmado. Quando Deusdete vai passar por cima do Xico, este não se contém e apronta o maior berreiro, soltando os gritos represados na garganta:

- Pra cima de mim não, coração! Por amô de Deus, Deusdete! Vai pro seu corpo, diabo! Cruzcredo!... Avemaria!... Creindeuspadre!...

Com a gritaria do Xico da Vitrola, companheirama acorda pedindo explicação. Quecofoi? Queco não foi? Deixa disso, minha gente! Nossa Senhora da Aparecida!... Explicado bem explicadinho, alguns acharam graça e outros ficaram com a pulga atrás da orelha, preocupados. Um deles foi o Ocride:

- Óia, gente! Isso é castigo de Deus. O morto num discansô até agora porque a gente num interrô ele. Deusdete deve tá divera puto da vida cagente!

- E o diacho é que ele passô inriba de nóis, né sô?... Isso é mau siná. Queira Deus que certas coisa qui o povo fala seja só boataria...

Foi o que conseguiu completar João Bentinho, todo cismado, o primeiro que o espírito do Deusdete passou por cima. Daquela hora pra frente ninguém mais dormiu. Só o Juca Morais é que ainda, de madrugadinha, conseguiu tirar uma pestana. Afinal, ele não acreditava nas lorotas que o povo conta.

- Uai, sô! Dexa de bobage, gente! Larga de mão disso! Quem morreu, morreu! Num vorta mais. O Xico tava era com sonhação!

Na metade da manhã chegaram com o corpo frio e duro do Deusdete no cemitério. Enterraram o amigo. Passaram num boteco para molhar a goela e se mandaram de novo, estrada a fora, rumo do sertão, cada qual pro seu canto.

Xico Vitrola, naquele ano, teve que fazer o trajeto de carregamento de defunto mais cinco vezes.

Autor: Eurico de Andrade - Brasília/DF
Publicação autorizada por escrito pelo autor da obra

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http://tabui.blogspot.com/

Roubar é comum

  
Meu tio Oto tinha uma loja de calçados em uma rua do centro histórico da cidade. Durante muitos anos a Casa Lorita garantiu o sustento da família, mesmo algum tempo após a sua morte prematura.
O padrão da loja era voltado para a classe média, oferecendo produtos de qualidade com preço justo. No rol de fregueses estavam famílias tradicionais da cidade e muitos colonos que se abasteciam no comércio das cercanias, enquanto os cavalos matavam a sede no bebedouro do Largo da Ordem.
Naquela tarde de pouco movimento meu tio estava sozinho na loja, quando chegou uma senhora bem vestida, educada e falando com o sotaque chiado de uma importante e maravilhosa cidade da Região Sudeste. Pediu para ver alguns modelos, sentou-se e foi provando aqueles que ele lhe trazia.
Em poucos minutos já dava para concluir que se tratava de uma cliente exigente demais, pois nada lhe agradava. Um apertava em cima, outro nos lados, um terceiro folgava. Aquele era feio ou a cor não combinava. Calçava um por um e torcia o nariz.
O tio Oto, com a paciência que Deus lhe dera em excesso, ia tirando tudo das prateleiras, na tentativa de encontrar um exemplar que satisfizesse tão sofisticada senhora.
Depois de oferecer todos os modelos das prateleiras, ele foi ao estoque, no mezanino, buscar mais alguns. Olhando lá de cima, viu que ela escondia um par do melhor sapato de salto alto na bolsa, depois de experimentá-lo e tampar a caixa cuidadosamente. Tio Oto voltou com vários outros pares e continuou no seu ofício de servir, com a mesma dedicação e sem comentar nada. Queria ver no que ia dar aquilo.
Depois de meia hora e muitos pares provados, colocando um ar forjado de irritação no semblante, a forasteira levantou-se e disse:
- Já vi que nesta cidade não tem sapatos que me sirvam.
Voltou-se para a porta com o propósito de tomar o rumo da rua, mas o meu tio prontamente a interrompeu, postando-se à sua frente.
- Minha senhora, lamento não termos sapatos do seu agrado. Mas gostaria que devolvesse o par que está na sua bolsa e faltando aqui - disse ele com a caixa vazia nas mãos.
A mulher, surpresa ao saber-se descoberta, logo fingiu indignação para começar sua defesa. Mas arrependeu-se assim que iniciou a primeira frase, avaliando que de nada adiantaria um bate-boca àquela altura dos acontecimentos. Olhou para o tio Oto de cima a baixo com visível desprezo e sacou da bolsa o par de sapatos. Com força atirou-os aos pés dele e, caprichando no sotaque, despediu-se com esta:
- Pode ficar com sua porcaria. E saiba o senhor que roubar, neste país, é comum.
***
N. do A. (2) - Na ilustração, tela de Paul Garfunkel retratando o Largo da Ordem, em Curitiba, Paraná, em cujas imediações ficava a Casa Lorita.

Autor: João Carlos Hey – Curitiba/PA
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Publicação autorizada pelo autor

A última ceia de Lampião - Autor: Rangel Alves da Costa


Era por volta da segunda dezena de julho de 38, na Gruta do Angico, nas beiradas do Velho Chico, nas terras da povoação sergipana de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, tendo o município alagoano de Piranhas do outro lado, um pouco mais à esquerda.

Ali ao redor da gruta se escondia o bando cangaceiro de Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião, em desconfortante repouso depois de chegar de longa jornada pela aridez baiana do Raso da Catarina.

O Capitão achava o local um refúgio seguro, pois de difícil acesso pelo lado sergipano e podendo contar com o grande número de amigos que mantinha na região, gente humilde, da mataria, mas também portentosos senhores de terras. Do coronel ao matuto, era significativo o laço de amizade construído.

Mas para se manter naquele coito, naquele refúgio de espinho, ao abrigo do sol e da lua, Lampião precisava muito mais do homem do mato do que de outra pessoa influente. E para tal não existia amigo melhor, mais confiável e mais conhecedor das veredas sertanejas do que o coiteiro.

No respeitante ao cangaço, coiteiro era aquele sertanejo que servia de intermediário entre o bando e o mundo exterior, fazendo às vezes de correspondente, de mercador, de assistente de quase tudo. Assim, era responsável pelo transporte do alimento, do remédio, de dinheiro e tudo aquilo que os cangaceiros necessitassem.

Muitas vezes somente o coiteiro sabia o local onde o bando estava escondido. E aquele que soubesse e lhe fosse confiado a manutenção do segredo - um juramento que deveria ser inquebrantável - entre o bandoleiro e o matuto, suportaria até a morte para não trair a confiança do Capitão. E muitos foram presos, torturados, humilhados, mas mantendo sempre o silêncio da honra.

Por isso mesmo que Lampião nutria uma amizade especial por cada um desses sertanejos, cada coiteiro que arriscava a vida em nome da sobrevivência e subsistência do bando. Sabia que seria muito difícil sobreviver nos escondidos sem tão importante ajuda. Sabia que do seu silêncio dependia o amanhã do seu povo marcado pelo destino das perseguições.

Daí que estando refugiado no Angico e na tentativa de estreitar ainda mais os laços de amizade e a rede de proteção, lá pra cima do dia vinte, mais precisamente no dia 27 de julho, resolveu que seria a hora de convidar a coiteirama para um regabofe, para um café à base de muita carne de bode e farinha seca. Tal evento ficaria lembrado na memória nordestina como A Última Ceia de Lampião.

Denomina-se ceia a refeição da noite, a última de cada dia; a última refeição do dia, entre o jantar e o sono noturno, ou em lugar do jantar. A Bíblia também relata uma santa ceia, que foi a última refeição de Cristo com os apóstolos, por ocasião da qual instituiu a eucaristia, e antes de ser preso e crucificado. Foi também nesta ocasião que Jesus revelou que um de seus discípulos iria traí-lo.

Talvez predestinado, intuindo o que fatalmente lhe estaria prestes a acontecer, Lampião resolveu que nesta refeição sertaneja homenagearia os fiéis matutos e procuraria olhar bem nos olhos daquele coiteiro tentado a fraquejar e traí-lo, apontando covardemente à polícia alagoana comandada pelo Capitão João Bezerra onde o bando estava escondido.

Assim foi feito. Aproveitou que o mais famoso dos coiteiros apareceu por ali cedinho e pediu a Mané Félix que providenciasse tudo o que precisava para a janta do anoitecer. E por ele mesmo mandou avisar, de boca em boca, a cada coiteiro para comparecer. E cada cabra veio até de longe atendendo ao chamado do amigo Capitão.

Quando o entardecer começou a tomar outra cor a carne de bode era estendida por cima das fogueiras abertas no chão. Coiteiro chegava trazendo uma pinga, uma comida diferente e logo se reunia aos demais. Todos, coiteiros e cangaceiros, com semblantes alegres e festeiros, menos o Capitão Lampião.

O Capitão tentava, a todo custo, fingir o pressentimento ruim que sentia, fazia de tudo para não abrir logo a boca e perguntar quem havia cometido o pecado da traição, quem havia revelado o paradeiro do seu bando. Ainda não tinha certeza do nome, mas tinha quase certeza de quem seria capaz de tal atitude.

Mas se conteve e procurou palavras de agradecimentos para os destemidos sertanejos, ainda que a todo instante tivesse vontade de apontar a arma em direção a um deles e dizer que era melhor falar a verdade para não morrer. Não fez assim, e por isso entristecia-se ainda mais. Sabia, pois, que o seu fim estava muito próximo, sentia isso por dentro.

Com pedaços de bode assado passando de mão em mão, Lampião enfim pediu silêncio e disse que infelizmente tinha algo a dizer que lhe cortava o coração. Um dentre vocês me traiu. Um dentre vocês que se serve do bode dessa refeição me traiu. Foi o que disse o Capitão. Todos se olharam assustados e começaram a se perguntar quem seria capaz de fazer tal absurdo.

Mané Félix, que estava sentado ao lado do rei dos cangaceiros, perguntou-lhe se podia dizer quem havia feito isto. E Lampião simplesmente respondeu que não adiantaria, pois ainda que dissesse o nome este negaria três vezes trezentas vezes. E completou dizendo que o remorso tomaria conta do coração traidor.

E contam que Pedro de Cândido, um dos coiteiros ali presentes, saiu de lá chorando. Nesse mesmo dia, mais cedo, na feira de Piranhas, ele havia contado à volante do capitão João Bezerra que Lampião e seu bando estavam refugiados no outro lado do rio, ali na Gruta do Angico.

E horas depois dessa última ceia, na madrugada do dia 28 de julho, a polícia atravessou o rio e cercou o bando, matando Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros.

Autor: Rangel Alves da Costa - Aracaju/SE


Poeta e cronista



Publicação autorizada através de e-mail de 30/06/2012
  

O menino da bicicleta vermelha - Augusto N Sampaio Angelim

Todas as tardes, eu voltava do Colégio Góes Calmon para casa, no Sítio Riacho Seco, no Município de Itaberaba, pedalando com alegria uma velha e boa bicicleta Monark, de cor vermelha desbotada pelo tempo e de pneus que, de tão gastos, não resistiam aos espinhos e pedras da estrada de terra. Gostava de ouvir o barulho macio dos pneus na areia e o vento no rosto, assanhando meus cabelos.

Era um percurso de cerca de cinco quilometros, quase todo plano, perpendicular à Rodovia BR 242, no sentido de Seabra. Essas viagens diárias eram solitárias, quase ninguém transitava por ali. Aqui, acolá, um morador atravessava o caminho, um ou outro senhor, vinha olhando seus pastos, a cavalo.

Do final do perímetro urbano até à minha casa, contavam-se exatas 04 casas. Todas de gente conhecida. Uma delas pertenceu ao finado, João de Seu Dezinho, que, correndo atrás de uma rês desgarrada, caiu do cavalou e bateu com a cabeça num lajedo. Morreu lá mesmo, na hora, como se diz. Toda a vizinhança ficou consternada. Minha mãe, comovida pela dor e solidão de D. Magnólia, a viúva, passou um mês inteiro, indo prosear e consolar a jovem viúva. Quando eu estava voltando da Escola, lá estavam as duas conversando na varanda da casa enlutada. Eu parava a bicicleta, sequer descia. Boa tarde, Dona Magnólia. Boa tarde, Pedrinho. Minha mãe, se despedia, subia na garupa da bicicleta e reclamava o tempo todo para que eu fosse mais devagar.

O tempo foi passando e as visitas de minha mãe foram diminuindo, mas, sempre que avistava D. Magnólia na varanda ela me cumprimentava com um sorriso e um leve aceno de cabeça. Vez por outra, fazia sinal para que parasse e mandava uma encomenda para minha mãe. Bolo, tapioca, doce. Tenha cuidado, menino, não vá deixar cair.

Eu tinha 13 anos e já tinha despertado para as coisas do sexo. Na escola, nas horas de recreio, ou se jogava bola, ou se falava em sexo. Os meninos que moravam na rua, se vangloriavam de suas proezas, dizendo que tinham visto e isto e aquilo de uma moça ou mulher. Da minha parte eu não tinha nenhuma vantagem para contar. O que sabia, era de ver os animais se reproduzindo. Isabel, uma menina que sentava no canto esquerdo da sala de aula, me olhava de um jeito diferente. Tinha vontade de ser seu namorado, mas faltava coragem. Ao se aproximar do final do ano, fiquei desesperado quando soube que ela ia deixar a Escola, pois o pai dela, funcionário dos Correios, fora transferido para Feira de Santana.

Minhas amizades com os outros meninos iam aumentando e, na mesma proporção eu tomava conhecimento de suas gabolices e me sentia diminuido.  Até que numa sexta-feira, ao passar em frente à casa da viúva, ela mandou que eu parasse e perguntou se eu poderia lhe levar até à nossa casa, pois precisava falar com minha mãe. Pois, não, D. Magnólia, pode subir. Quase tive vontade de dizer que ela não se acanhasse e subisse logo.  Ela entrou em casa, pegou um embrulho pequeno e subiu na garupa da bicicleta. Talvez por falta de costume, passou a mão direita em minha cintura, fazendo com que eu sentisse um leve cheiro de alfazema. Meu coração acelerou e minhas pernas reduziram a velocidade da bicicleta. Foi uma viagem pequena, para as sensações que eu estava experimentando. Logo chegamos e, ao escutar o tilintar da buzina da bicicleta, minha mãe já veio ao nosso encontro. As duas ficaram conversando na cozinha de casa, enquanto eu fui cumprir minhas obrigações de menino de roça. Já era noite quando mamãe ordenou que levasse a visita de volta. Eu já estava esperando por isto, mas mesmo assim, foi grande meu contentamento e, depois, das despedidas, fui pedalando devagar. O pneu traseiro furou e acredito que não podia ter acontecido nada melhor, pois ela tentou me ajudar no remendo da câmara de ar. Ficamos com nossos rostos pertos um do outro. De soslaio, pude olhar para o volume estonteante dos seios dela. Consertado o pneu, retomamos o caminho e, novamente, ela me envolveu com seu braço. Na chegada, ela despediu-se e agradeceu a gentileza. Não foi nada, respondi. Fiquei parado, ela subiu as escadas da pequena varanda de sua casa e, quando estava abrindo a porta, voltou-se e me viu ali parado. Disse-me, quase em tom de ordem: vá embora Pedrinho. Não se demore, D. Rita vai ficar preocupada. Quase não consegui pregar os olhos naquela noite. Passei o sábado imaginando muitas besteiras. Quando fomos à igreja, no domingo, não consegui sequer rezar direito a oração da Ave-Maria. Na segunda-feira, na hora do recreio, me enchi de uma coragem mentirosa e disse aos outros, que tinha visto os seios dela pelo decote do vestido. E como isto ainda poderia pouco, aumentei mais ainda a pabulagem dizendo, também, que ela tinha me dado um forte e longo abraço, que quase encostava os seios na minha boca. Os outros meninos ficaram de olhos arregalados e não sei se todos deram confiança às minhas fantasias, mas eu, com o passar dos anos, passei a acreditar piamente nelas. Uma prova disto é que minha velha bicicleta ainda existe. Eu trouxe para Salvador depois que terminei a Faculdade de Direito, mandei fazer um primoroso serviço de restauração nela e, aos domingos, com pneus novinhos, pedalando pela orla de Amaralina, de vez em quando, ainda sinto o perfume da alfazema de D. Magnólia.


Autor: Augusto N Sampaio Angelim - São Bento do Una/PE
Publicação autorizada através de e-mail (..)

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Um estranho fim de viagem

Autora: Maith

O avião estava lotado. A viagem era longa e os passageiros, cada um a seu modo, procuravam passar o tempo mais agradavelmente.
Alguns admiravam a paisagem que se descortinava ao longe, outros liam absorvidos, outros conversavam ou se mantinham calados.
Alguns estavam calmos, outros ansiosos como uma passageira que tentava em vão disfarçar seu pavor pela altura naquela sua primeira viagem aérea.
Um garoto a cada dez minutos pedia para a mãe levá-lo ao toalete. Na verdade o que ele queria era levantar-se, amolar a mãe e incomodar a senhora que se sentava a seu lado.
As duas mulheres acabaram se apresentando, conversando, tornando-se quase amigas
Uma mocinha que viajava só logo entabulou conversa com o rapaz a seu lado. Atração mútua que lhes propiciou uma viagem mais agradável.
Um senhor de idade espalhou-se na poltrona e dormiu tranquilamente.
Tudo parecia normal. Um voo como muitos outros que faziam aquela rota atravessando o Oceano levando os passageiros para o outro lado do Mundo.
Ao aterrissar, porém, os passageiros surpreenderam-se ao ver que eram desembarcadas dezenas de urnas mortuárias trazendo os restos mortais das vitimas do acidente acontecido na véspera e maior ainda foi o assombro ao tomarem consciência de que aqueles eram os seus próprios despojos.
Na verdade aqueles corpos sem vida já não lhes pertenciam, iam ser sepultados enquanto eles continuavam vivos.
E agora? Para onde ir? Que fazer?
A bagagem! Todo passageiro tem a sua bagagem, mas eles não tinham nada para retirar.
Só então tomaram consciência de que não estavam vestidos, mas também não estavam nus.
Tudo lhes parecia agora muito confuso. Lembravam-se vagamente do acidente, mas como foi que aquilo aconteceu? O avião despedaçou-se, todos morreram e eles continuaram a viagem tranquilamente sem nada perceber?
Tentaram conversar, trocar ideias, mas não conseguiram. Ninguém parecia ouvi-los
Os dois jovens, que estavam se entendendo tão bem, agora não pareciam falar a mesma língua, aliás, ninguém conseguia se comunicar cada qual entregue ao seu próprio desespero diante do absurdo da situação.
Mãe e filho desesperados não conseguiam achegar-se. Porque agora tudo era tão estranho? Era como se cada qual procurasse por si mesmo. Que coisa incrível!
Aos poucos, porem, foram se distanciando uns dos outros, se perdendo em si mesmos e acabaram desaparecendo no infinito.
E tudo que restou cá na Terra foi uma corriqueira e triste notícia:
Um avião despedaçara-se no chão depois de sofrer uma pane, e as famílias chorando seus mortos e lamentando a fragilidade da vida e a insegurança que rodeia todos nós.


Autora: Maith - Sorocaba/SP




Publicação autorizada pela autora

domingo, 2 de novembro de 2014

O Natal Inesquecível - Autora: Chila Alves

Em um Natal no começo da década de cinquenta, meus pais decidiram trazer a nós, o encanto do Papai Noel. Papai fez duas armações de madeira e pintou de azul e mamãe fez duas redinhas com estampas diferentes e vestiu ricamente, como bebes duas bonequinhas de louça.
Na véspera do Natal, mamãe nos levou até a cozinha e nos contou sobre o "bom velhinho". Minha irmã mais velha entendeu melhor, pois estava com quatro anos, eu com dois, sem contar que a caçula tinha apenas seis meses. Mas mamãe falava com tanto encanto que só poderia ser algo maravilhoso! Disse que nossos sapatinhos deveriam ser deixados na janela. Mas naquela noite choveu. Então com delicadeza, os colocou na parte mais baixa do fogão á lenha. Os de minha irmã que eram de verniz preto, as minhas sandálias brancas e do bebê que eram de tricô.  Com carinho nos disse:
-Como está chovendo, vamos deixar aqui, com a janela um pouquinho aberta, para que o Papai Noel possa espiar e ver os sapatinhos...
Por volta das dez horas, dormíamos e ela nos acordou:
-Acordem, venham ver!... O Papai Noel já esteve aqui!
Ansiosas, corremos até os sapatinhos e encantadas vimos os brinquedos. Para o bebê, ele deixou bolachas, das que mais gostava.
Emocionados nossos pais nos observavam. Ela voltou-se para ele e disse:
-Vá buscar o Jepp enquanto as arrumo!
Faltavam poucos minutos para a meia noite, quando seria rezada a missa-do-galo. Papai parou ao lado do jardim da igreja sob uma frondosa árvore. Emocionados, adentramos a igreja ao som da música Noite Feliz, cantada pelo coro das Filhas de Maria.  
Ele me levava no colo e mamãe o bebê. Minha irmã ficou no meio, com todos entreolhando-se, envolvidos em imensa felicidade.

Autora: Chila Alves - Santo André/SP