sábado, 24 de janeiro de 2015

A Quinzena do autor: Denise Coimbra

Autora: Denise Coimbra

Nasceu em 1965, em Bom Despacho, Minas Gerais. Psicóloga graduada e pós graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro, ocupante da cadeira 21, da Academia Bom-Despachense de Letras, tendo Hilda Hilst como patronesse.
Em 2007 participou do Concurso de Contos  do SENAC Minas  e teve o  conto  “A Primeira Vez” publicado na revista eletrônica do SENAC.
Publicou em 2014 o livro de contos 54, Rua da Alfândega
As 24 histórias do livro nos trazem personagens tão fascinantes em sua simplicidade e tão coerentes no seu transitar pela vida. Homens, mulheres, crianças e suas histórias de vida. Eles existem, são reais em um universo paralelo ao nosso de leitores, profissionais das letras, acadêmicos: são funcionários públicos, carteiros, passadeiras, esposas e maridos e filhos e filhas tão dignos em sua dor e tão verdadeiros em sua alegria. Conseguimos ver-lhes o rosto perplexo, impassível, sofrido, ansioso, belo, questionador e resignado.
O trabalho, o exercício da profissão que dá suporte aos homens, e a vida, que segue inexorável seu curso, são objeto deste trabalho de estreia de Denise Coimbra. É um livro de fino observador da alma humana, repito. É uma leitura densa e ao mesmo tempo delicada. Daquelas que nos levam a diminuir o ritmo nas páginas finais, como a evitar que o livro acabe.
Além de contos, crônicas e poesias, Denise está escrevendo o seu primeiro romance.

Renascimento

Soturna e enigmática, a mulher dormira naquela noite.
No dia seguinte, realizara toda a rotina da casa, do trabalho e da família. Sensação de missão e dever cumpridos – relembrara, fixando as estrelas.
Desde então, a madrugada tornara-se um guia para longas caminhadas. A poeira fina no rosto mostrava-lhe o caminho da vida, traçado anteriormente, ao qual ela teria que retornar rapidamente, sob pena de perder-se por entre as novas paisagens que, vagarosamente, surgiam em sua mente.
Contudo, aos poucos, percebera que aqueles passeios diários alimentavam em seu espírito uma vontade imensa de tornar a vida mais intensa e apetitosa. A sensação que tinha é que a sua vida anterior oscilara entre ansiosa e ociosa. Portanto, fazer algo diferente era premente dentro dela.  A mulher que fora nunca mais seria.
Decidiu então que, juntamente com o fim daquela estação, ela também se transformaria. Deixar-se-ia renovar como os galhos das árvores em seu pomar e abriria seu ventre para as sementes que a vida plantaria dentro de si.
Para isso, na madrugada seguinte, banhou-se no rio ao fundo do seu quintal, colocou uma roupa nunca usada e saiu em direção ao nascer do sol.
Nunca mais voltou.

Pequena Crônica do Cotidiano

Para Elisete

Leio. Sentada no banco da praça, meus olhos passeiam pelo entorno e encontram um homem que fuma e olha a bicicleta que descansa o pedal na ponta do passeio. Com ele uma garrafa de cerveja para beber a vida solitária e triste mais tarde e em casa.
Um cachorro modorrento e outro lépido, habitantes comuns do lugar, se aproximam e se afastam de mim e do homem tranquilamente. Em seguida, um deles corre e se esbalda na areia. Como um pêndulo, a minha infância no balanço do tempo.
De lá e de cá duas moças cortam o caminho pela praça. Nas mãos, as marcas da vida embrulhadas em sacolas de supermercado.  Uma delas pára, sorri e seus olhos atentos, lêem as muitas histórias que a vida narrou em mim.
O menino de bicicleta serpenteia, equilibra, dá voltas em torno de mim e me encanta com seu jeito instigante e radiante numa espécie de galanteio mirim.
Duas mulheres, à porta da casa, cochicham, especulam sobre a leitora inédita sentada na praça entre montes de entulhos e lixo esparramados pelos quatro cantos e os poucos canteiros. Cismadas, entram e trancam o portão: não querem mais saber dos poemas sujos, versos toscos e  textos ímpios que a comunidade deposita todos os dias na porta da casa delas.
Quase colado à praça vejo o cemitério e relembro: meus avós, meu pai e meu tio estão ali. Entre rosas, vasos, velas e orações deposito o meu silêncio e a minha saudade.
Neste momento, o telefone toca: hora de buscar minha filha. Fecho o livro. Pego a chave do carro e o celular. Caminho até o carro e começo a escrever uma pequena crônica sobre o cotidiano.
                                  
O Portal da Liberdade
                                                                                                         
Era uma vez um menino que nasceu no dia 15 de novembro.  Muitos anos antes dele nascera também neste dia a República do Brasil. Motivo duplo para a comemoração! O ano, nem tanto! 1967 era mais um dentre os muitos sombrios e tristes provocados pela cruel e silenciosa Ditadura Militar no país.
Alheio ao contexto opressor e político, crescia o menino que gostava muito, muito mesmo de brincar. Percorria léguas ao encontro de um esconderijo na mata para construir uma cabana e esconder-se dos inimigos ou da turma rival. Jogava bentes altas, bolinhas de gude, finca e futebol na rua. Andava de bicicleta, carrinho de rolimã e patinete. Era um menino alegre e muito curioso, como todo e qualquer menino, de toda e qualquer parte do mundo.
Aos seis anos de idade, na cidade do interior de Minas Gerais onde nasceu e vivia, o menino foi levado pelos pais a descobrir um tesouro: a Escola. Foi uma experiência marcante. E o menino passou a frequentar regularmente aquele local tão diferente e cada vez mais intrigante. No início, ele relutou bastante porque, para ele, não lhe sobraria muito tempo para jogar, fazer peripécias e brincadeiras que ele adorava inventar. Sabia que a meninice era a vida no auge do seu encanto. Queria-a toda e inteira guardada no seu coração infante. 
Por causa disso, levou uma surra. O pai, sabedor da beleza e da riqueza contidas naquele tesouro, teve uma reação impensada, ignorante, mas que foi perdoada pelo menino. Rapidamente compreendeu que o pai queria que os olhos e as pernas do menino alcançassem o mundo, numa outra forma de conhecimento: vasto e amplo.
Muito abrangente tornou-se a experiência do menino naquele mundo e dali em diante. Com suas perguntas, incógnitas e anseios, o tesouro, ao invés de diminuir, se duplicava, triplicava, não tinha fim. E sabem por quê? Porque o menino e o tesouro tornaram-se um só.
Mas a vida lhe reservara uma surpresa maior e extremamente rica. O menino descobriu-se outro, no meio de outros meninos, que liam, noutros cadernos: os livros. Correu para o pai e suplicou ao menos um! Suas capas, histórias deslumbrantes aguçaram o desejo do menino. Queria transformar-se. Queria tomar posse. Exigia apressado e intransigente, atitudes típicas de um menino.
O pai, que aprendera a conhecer profundamente o filho, tomou-lhe as mãos e caminharam até um portal, o único daquela cidade, quiçá da região. Adentraram, e o menino ganhou de presente todos os livros guardados no maior tesouro nunca antes visto por ele: a Biblioteca Pública da sua cidade. Eis o portal da Liberdade dele e de todos os meninos de toda e qualquer parte do mundo!

Maria, a lavadeira

Maria, a lavadeira, leva trouxa ladeira a baixo e a cima. Todo dia, na mesma hora, no mesmo ritmo. Em cima do muro, a molecada grita, faz chacota e brinca com ela. Vida dura, mas digna, responde a mulher sempre resoluta e firme. Só fraqueja um pouco quando chega a casa e vê Clarinha se arrastando pelo chão, comendo insetos mortos. A mãe tem pânico que o mesmo aconteça com a filha, nas horas em que sai para o trabalho e a deixa sozinha, às moscas. Mas o trabalho que cansa o corpo alimenta a alma, pensa a mulher enquanto lava as roupas.
É como se, em cada esfregar, em cada ensaboar, em cada enxágue, a vida limpasse, destruísse as mágoas, a pobreza, a revolta e as transformasse em cuidado, em beleza, em esmero. Como aquele vestido que ela pediu a Eunice para fazer e que vai usar na noite do novo ano que vai chegar na manhã seguinte. Só espera que a costureira lembre que o vestido tem que ter o corte bem reto, que, de torta, já basta a coluna que foi estragada pelo peso das trouxas, que a vida lhe pôs muito cedo na cabeça, quando, aos oito anos, saiu com a mãe de Teresina, depois que o pai surrou a coitada, por causa de um tal Josemar. 
Nenhuma palavra sobre isso nem quando chegaram a São Paulo, nem ao final da vida dela. Ficou sempre uma questão para a menina, já mulher, também maltratada pelo homem que escolhera. Parecia que aquele trabalho, que tanto a machucara - calo nas mãos, pele e cabelo queimados - também a salvara, não da pobreza, mas da miséria, tanto do corpo quando da alma. Ninguém poderia entender o que ela sentia quando lavava, esfregava, torcia, esticava as roupas e separava as peças antes de montar a trouxa.
Cada peça tinha um lugar certo para dar equilíbrio e permitir que o nó fosse dado e prendesse a trouxa de forma igual e, com isso, impedisse que nenhuma parte da roupa lavada ficasse à vista, evitando a sujeira e o mal olhado das colegas, que às vezes perdiam o trabalho por causa da sua fama, que já não era pequena. Rápida e caprichosa, entregava as roupas no prazo combinado. E a clientela aumentava dia a dia.
Nessas horas, pedia proteção a Deus e agradecia à mãe por ter lhe ensinado aquele ofício, já que viver no vazio, sem ocupação, era a maneira mais triste de viver, pois era como se ela deixasse de existir, não só para si mesma, como para todo o resto do mundo. Mesmo que esse todo o mundo fosse o resto esquecido, pelos governantes e até por Deus, relembrava Maria nos seus momentos de maior desolamento e desânimo, quando não lhe entregavam roupa, naquele tempo em que tivera que mudar com a filha por causa da violência do homem que escolhera. Ela o acolhera bêbado e sem rumo, há quinze anos, e fora parar naquele barraco, sem teto, abandonado, depois que a polícia fez a limpeza daquela boca de fumo.
Agora, com a nova clientela, já definida, Maria faz planos. Ajudar a filha nas escolhas que ela vai ter que fazer na vida. Pede a Deus e à mãe, em oração, que ela não faça escolhas tortas, ou não carregue peso maior do que aguente. E que escolha, sim, um trabalho que a complete, que a realize e que lhe permita ser mulher digna.
No último enxágue, a lavadeira viu seu rosto na água cristalina e sentiu que estava pronta para vestir, dali em diante, a vida branca e limpa, como aquele vestido que ela usaria no dia seguinte.

Do livro,  54, Rua da Alfândega


Amizade

Quando veio de Portugal para o Brasil, Joaquim Braga ficou muito triste, pois deixara seu amigo Antônio Cerqueira em Lisboa. Para não se esquecerem um do outro, fizeram um pacto. Escreveriam cartas todos os dias contando as novidades para manter a amizade em dia.
E assim foi durante os oito primeiros meses até que, ao final de um ano, as cartas foram diminuindo tanto, tanto, que após o Natal já não havia mais nenhuma. Joaquim sentiu um vazio tão grande, medido mais ou menos na distância do oceano que os separava. Decidiu, então, voltar a Portugal e rever o amigo para entender o que estava acontecendo. O questionamento acerca do valor da amizade e dos motivos da ausência das cartas durou o tempo da viagem.
No Ano Novo, já em Lisboa, deu de cara com Antônio sentado à frente do computador, escrevendo um livro de memórias.Saíram para beber e colocar a conversa em dia. Ficaram juntos uma semana.
Ao voltar para o Brasil, Joaquim levara o livro que ganhara de presente do amigo. A leitura do livro durou o tempo da viagem. Já a dedicatória permaneceria para sempre em sua memória. Antônio escrevera: “Ao amigo Joaquim, para além da promessa e da distância...”

Do livro,  54, Rua da Alfândega

Memória

Trago em mim lembranças. A maioria delas, fruto de minhas vivências. Outras, de tão bonitas, tomei-as emprestadas. Numa espécie de embelezamento da vida que insisto em manter até a morte. Mas não quero ser enterrada. Prefiro ser cremada. Partes minhas, em todos os lugares, espalhadas na terra, pelo vento.
Há vinte anos, meu avô, assim como o de Mariano, contado por Mia Couto, fingiu morrer para me ter por perto e recontar suas histórias. Queria assim alongar conversa, como gostava de dizer quando me convidava para sentarmos à porta de sua casa. Ávida de suas memórias, encolhia-me feito um tatu-bolinha e alimentava de palavras e de sentido minh’alma vazia. Enroscada em suas pernas, entrelaçava cada vez mais a sua vida na minha.Por sorte, quando ele morreu de verdade, parte dele já era tão minha, que não senti tanto a sua morte.
Além do fato de que ele eu fizemos um pacto de reminiscências. Eu iria visitá-lo todos os dias, para espichar conversa, nos momentos de solidão e saudade, numa espécie de prolongamento da vida, numa afronta ao silêncio e mistério da morte.

Do livro,  54, Rua da Alfândega

Agosto, o mês do desgosto

Telefonei para uma amiga para desejar-lhe um dia alegre e bem proveitoso pois hoje, vinte e nove de agosto  é o dia do  aniversário dela. Aparecida nasceu e vive em Coimbra, Portugal para onde viajei em busca de informações sobre a origem da minha família. Resultado: fiz mais amigos do que pesquisas. Desde então, fortes motivos para retornar não me faltam: revê-los e finalizar a pesquisa.
Antes da ligação, eu e minha mãe conversávamos sobre crendices e  supertições a respeito do mês de agosto ser considerado o mês do desgosto. Acreditem ou não, minha amiga elucidou a questão com o seguinte fato.
            As viagens marítimas portuguesas em busca das novas terras ocorriam em agosto, por causa disto, casar durante esse mês era “sinônimo de ficar só, sem lua-de-mel e o mais triste, viúva”. Com o descobrimento do Brasil, essa história atravessou o oceano, explica  minha amiga, do outro lado do Atlântico. Conversamos um pouco mais e, pesarosas, nos despedimos com a promessa de uma visita marcada para o ano vindouro. 
Entusiasmada, relatei para a minha mãe o que Aparecida me esclarecera.  Com um ar brejeiro e um tom de deboche , ela narrou a seguinte história.
Em Portugal, no ano de 1666, D. Maria Francisca de Sabóia, uma rainha ambiciosa e    repleta de ardis, preocupada com as queixas das mulheres portuguesas sobre o fato de que os portugueses que viajavam para o Brasil não retornavam à  terra natal porque preferiam viver aqui e casarem-se com as nativas, mandou espalhar boatos  nas terras brasileiras, de que casar em agosto dava azar. E, para completar, divulgou também o boato de que todo português é burro. Não deu outra. De lá pra cá, quase nenhuma brasileira se casa em agosto e, poucas arriscam o matrimônio com os portugueses.  E, assim, desde os tempos remotos, acirraram-se as rixas e zombarias entre os povos.
Incrédula, eu ainda ouvi minha mãe reafirmar: esta história foi contada em 1910 durante as comemorações da Festa de Nossa Senhora do Rosário, numa roda de conversa em Ibitira, por uma tataraneta de Chico Rei que trabalhava na mesma fazenda que meu avô.
Não tenho como confirmar a veracidade dos relatos. Não se duvida de amigo, muito menos das histórias que a mãe da gente nos conta. Para finalizar, lembro-lhes que agosto é o mês do folclore. Registro aqui minha deferência a Luís  da Câmara Cascudo, que colheu no seu cesto literário, o tesouro das lendas brasileiras e, assim nos fez mais ricos e sensíveis na demonstração e divulgação da nossa cultura. Oxalá seja esta pequena crônica mais uma invenção, pura ilusão transmitida de geração a geração! 

Dúvida

Dizem uns que a dúvida acompanha o homem desde que Shakespeare se perguntou: To be, or not to be... Outros contrapõem, dizendo que foi com Adão. Que não sabia se queria ser como Deus ou como Eva o preferisse. Manuel, que estava alheio a esse questionamento, coçava a barba enquanto pensava se pedia Margarida em casamento. Afinal de contas, todos diziam que o homem, depois do casamento, muda muito, e ele tinha um pouco de medo disso.
Acostumado ao futebol, à cerveja aos sábados e à leiturado jornal toda a manhã de domingo, não sabia se queria mudarisso, pois mulher adora mudar a ordem das coisas. O pai sempredizia isso, embora risse ao mesmo tempo em que dava um tapa na b... da sua mãe, deixando escapar ali uma certa cumplicidade e alegria por ter alguém que o tirava de si mesmo, ainda que fosse um pouco.
Pena o pai não estar ali para aconselhá-lo, morrera há cincoanos. Manuel sentira tanto, que nunca mais passara em frente ao hospital para onde o pai chegou a ser levado, mas morreu naentrada, de mãos dadas com a vizinha que o socorrera. Dizem que o coração de músico é mais sensível à dor. Por isso, o infarto fora tão fulminante.
Teria que decidir sozinho. A dúvida cruel que se instalara dentro dele dava-lhe socos no peito que o deixavam sem ar. Correu até a janela da sala para respirar melhor. Na calçada em frente, viu um menino de mãos dadas com o pai. Pareciam ir para a escola. De súbito, o menino agarrou as pernas do pai e pareceu suplicar-lhe algo. O pai abaixou-se e, antes que o tomasse em seus braços, o menino trançou os bracinhos ao redor do pescoço dele e o abraçou com força.
Emocionado, Manuel se afastou da janela decidido. Iria se casar com Margarida. Abraçaria a nova vida como aquele menino, sem dúvida, nem reservas.

Penélope às avessas
Os fios do amor
Quero tecer
Nos dias à tua espera

Quero que me cubras
Com o manto da esperança
Enquanto tu não regressas
...

Na tua demora
Volúpia e paixão
Me descobrem

Penélope às avessas
Pretendentes
À mão

Distraio
Da tua ausência
Envolta em minha solidão!

------------------------

enquanto chove
a saudade goteja 
em mim

meu coração inundado
pelas lembranças
naufraga
num mar de lágrimas

enquanto chove
a solidão me atormenta
toma posse de mim

enquanto chove
o amor em dilúvio
desaba em mim!

Legado
Denise Coimbra

Vive dentro de mim
A poesia natureza
Mãe de todas as mães
Solo tenro e enraizado

Carne da minha carne
Cerne do meu ventre grávido
De palavras e de alento

Mãe de todos os versos
Cria, recria, rejuvenesce

A dureza da vida
Amaina
O gesto bruto
Enobrece

Oh! Criatura iluminada!

Tece Aninha
Seus poemas-prece

Semeia no vaso
A língua-porcelana
E oferta ao povo
Doce sua profissão!

Com o coração em Cora Coralina.
_
____________________
Nas veredas por onde trilha o amor...
Doce a tua palavra
Beija o céu da minha boca...

Tua língua
Semântica
Lambe, absorve
A sintaxe do meu desejo

Na etimologia do amor
O meu
No léxico
Do teu

Na regência do amor
O teu
Sintagma
Do meu!

Na gramática do nosso amor
A conjugação insana do verbo
Amar

O amor não cabe
O amor não sabe
Se metáfora
Ou metonímia

Na dramática do nosso amor
O desejo rouba a cena
e deixa no ar
a nossa história...

Autora: Denise Coimbra - Bom Despacho/MG
Publicação autorizada pela autora


Relógio do blog (início) 149.334 a 151.204 = Total de acesso: 1.870

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A Quinzena do Autor: Conceição Gomes

Autora: Conceição Gomes

Conceição  Gomes, paraense nascida na cidade de Irituia, Pará,  em 13 de agosto de 1944. Formada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Reside em Curitiba desde 1978. É casada, dois filhos. Poetisa amadora, escreve a partir das observações de seu entorno, seja o mais próximo ou o mais distante. Escreve para o Portal do Poeta Brasileiro, para os Blogs Gandavos e BVIWtecendoletras, para o site Recanto das Letras e para sua página no facebook. É membro da Academia Itapoaense de Letras-Itapoá, SC  e da Academia  Nacional de Letras do Portal  do Poeta Brasileiro. Já participou de   cinco antologias. Escrever para ela, é manter sua sanidade emocional  e um dos projetos de vida.Que viva em cada um de nós, a poesia.

ARMADILHAS.

Apaixonara-se pelo homem grisalho desde a primeira vez que o vira  no umbral do ateliê de artes. Passava por aquela rua todos os  finais de tarde  e depois daquele primeiro dia, ele estava sempre na janela, por trás das cortinas rendadas. Ela fingia não vê-lo, passava altaneira e inacessível, mas o coração denunciava o quanto desejava que ele a notasse. Era o seu homem!.
O homem grisalho tomara-se de amores pela moça bonita, orgulhosa e distante, que passava todos os finais de tarde pela sua janela. Quanto sonhava em ter um olhar dela, por mais fugidio que fosse... Era a sua mulher!
Naquela latência, em que ambos dormitavam o amor que sentiam um pelo outro, imaginavam mirabolantes  estratégias para  um encontro. O homem grisalho imaginou então que se deixasse de aparecer na janela, a moça bonita sentiria sua falta e quem sabe, entraria no ateliê. Então, uma bela tarde, ele não apareceu. A moça bonita afligiu-se! Observou as cortinas embaladas pelo vento e teve uma idéia. Ateou fogo em uma delas. E fingindo o mais desesperado clamor, entrou inopinadamente no ateliê para avisar o homem grisalho do risco de incêndio. Os dois apagaram o fogo. Em sinal de agradecimento, o homem grisalho convidou a moça bonita para um café. E ali, sentados em frente um do outro, olhos nos olhos, sentimentos em ebulição, sentindo o fogo da paixão acender-se, ambos sorviam  lentamente o café,    cada um pensando: armadilhas funcionam. A minha funcionou!

CAIXA DE GUARDADOS.

Era uma caixa bem grande, 60 x60 mais ou menos. Lá eu punha todo tipo de correspondência recebida: cartas, bilhetes, convites e cartões de natal
Quando aposentei fui revirar a tal caixa. Não tive coragem de jogar nada fora. Separei o que estava datado  por mês e ano e coloquei em álbuns. Tenho cartões de natal desde 1967, quando deixei Belém para morar em Fortaleza. Parte da minha história está nos bilhetes e mensagens que recebi de meus alunos, na época em que ministrava cursos e treinamentos de capacitação profissional.Outra parte está nos cartões de natal e carta dos amigos. Em outra  caixa menor estavam os certificados,  quase quatrocentos...Estão todos em álbuns, cuidadosamente catalogados. Vocês podem perguntar: por que ela guarda tudo isso? Não sei muito da minha história com avós, tios e primos. Eu era muito criança quando perdi minha mãe e já não tinha avós. Meu pai se foi quando eu era adolescente e já estava  morando longe dele. Um dia meu filho mais velho perguntou quem eram seus antepassados e eu não soube responder.Ainda quero fazer uma pesquisa no Cartório da cidade onde eu nasci para resgatar meus ancestrais. Por estas razões, fiz o álbum dos filhos, especialmente do mais novo.Lá estão os registros de nascimento meu e do meu marido, certidão de casamento, batismo, assim como dos avós paternos, o que pude conseguir.Minha neta, a primeira e mais jovem membro da família já foi nomeada por mim, a guardiã desses registros.  Guardei e já organizei do mesmo jeito, todas as correspondências recebidas pelos meus filhos.Até bilhetinhos de amigo secreto estão em álbuns. Espero dar este presente quando Mariana completar dez anos, se eu ainda estiver por aqui, o que espero com certeza.Também guardo com carinho uma Bíblia  Ilustrada Para Crianças. Vou encaderná-la para ser o presente de um ano dela. Não me importo de ser chamada de saudosista. Eu sou e assumida!

Nota: Já temos o segundo neto e a Biblia já foi entregue para  Mariana.

RECORTES  DA VIDA.

Já haviam se passado mais de quarenta anos desde que havia deixado sua cidade natal para acompanhar o marido  em suas várias transferências em função da carreira militar.Mas sempre que  voltava para visitar os familiares retornava às ruas de sua Cidade Velha, o bairro onde havia morado até o casamento. As calçadas com suas pedras portuguesas lhe eram tão familiares quanto o calor que lhe aquecia o corpo todos os dias. E as fachadas das casas, com os azulejos também portugueses...Gostava de deslizar os dedos pelos  relevos dos desenhos artisticamente dispostos e inalterados pelo tempo. Também se punha a imaginar o que acontecia nos velhos casarões geminados com suas janelas venezianas fechadas...Nos seus tempos de menina e de jovem, não havia medo em deixá-las abertas. Agora, isso não era mais possível. E na sua caminhada, buscava o velho casarão onde havia nascido.  Sentia-se feliz em saber quantas pedras compunham a calçada , da cor das suas janelas e do  número colado à parede. Sabia  das cores que compunham os azulejos.  E ao encontrá-lo, felizmente tombado pelo patrimônio histórico, seu coração sorria aliviado. Ali estava parte de sua história, um pedaço de sua vida. Adentrava em seu  interior buscando o abraço de  seus bem quereres que já estavam a sua espera.

COMO NÃO SEI REZAR...

Que  mal pergunte a quem de direito, o que há de novo na midia televisa que não seja  a espetacularização da violência, a mediocridade dos programas que fazem apologia a bundas e peitos e as mentiras calculadas dos politicos em desmentido s de suas falcatruas? Teremos nós  de ser chamados de alienados se recusarmos assistir tais noticias e tais programas? Por estas e por outras, estou pulando essas noticias, prefiro ligar meu três em um e ouvir algo  que me toque o coração como por exemplo o encontro do caipira pirapora com o seu Deus quando ele diz,  “como não sei rezar, só queria  trazer meu olhar, meu olhar “ou ainda,  “como vai você, que já modificou a minha vida? E para agraciar amigos dizer,  “entre, fique à vontade , a casa é sua.”..E mandar um recado: “vai minha saudade e diz a ele, que sem ele não pode ser, diz-lhe numa prece, que ele regresse, que eu não posso mais sofrer”... O olhando para minha netinha,   murmurar para seu coraçãozinho,  “Dio como te amo”. Para os amigos distantes  cantar , “tô  com saudade de tu meu benzinho”. E daqui há pouco vou escutar Alvorada Voraz e dançar neste final de tarde comigo mesma. Ou quem sabe, um Bolero de Ravel...

DEPOIS DO SUSTO, A SURPRESA.

Quando o casal adentrou  no consultório do Dr. Bento Damasceno, o médico teve uma surpresa fora do comum. Jamais, em toda a sua vida profissional vira duas pessoas de tamanha feiúra física.Os bonecos dos carnavais de Olinda perdiam de longe para o marido e a esposa, em tudo assemelhava-se  a Madame Min, aquela das  histórias em quadrinhos. Passado o susto, o médico, especialista em reprodução humana, acomodou o casal e iniciou a  entrevista inicial. Casados há mais de dez anos, já haviam tentado todos os tratamentos possíveis  sem  nenhum sucesso. Já estavam passando da idade  para ter um filho e não podiam esperar mais. Queriam uma criança! O Dr. Bento era a última esperança. Adotados os  procedimentos para a inseminação artificial, a mulher engravidou e durante toda a gestação foi acompanhada pelo médico, religiosamente. Passados os nove meses, o próprio Dr. Bento fez o parto. Estava curioso para ver o rosto da criança. Quando o bebê, uma menina, nasceu, Dr. Bento não podia acreditar no que estava vendo. Jamais vira uma criança tão  bela! Mais tarde, foi ao berçário. Por muito tempo,  admirou aquele rostinho cor de rosa, os cabelos em cachos, tal qual os que vemos nas gravuras dos anjos, as mãozinhas   como que esculpidas pelo cinzel de um artista...Aquela criança, nascida de pais tão feios, era de uma inusitada beleza. E como se percebesse  que  estava sendo admirada, a menina abriu os  olhos de um azul anil e sorriu levemente, o mais belo sorriso que  ele já havia visto. E o médico, não contendo a emoção, chorou  as lágrimas  mais felizes de toda  sua vida.

DAS  NOITES  E  AMANHECERES.

Nada  mais romântico do que observar um casal  banhado por uma noite enluarada caminhando  em paradisíaca praia, entre calientes beijos e sôfregos abraços, matizes da esperança  na infinitude do amor.
Inebriante é a atmosfera de  aposentos incensados pela paixão, entre lençóis de seda, dos corpos que entregam-se  à dança  do acasalamento e pedem pela eternidade da  noite.Quem vive ou viveu, sabe.
Suaves são as noites em que os sonhos acalentam o  sagrado sono do repouso e os felizardos podem  rechaçar a indesejável insônia. Serenidade para o  próximo amanhecer.
Envolvente é o encontro de amigos   embaixo de caramanchões, ao som do violão que dedilha  canções   para acalentar  noites de saudades e esperanças. A música é companheira contagiante.
Interessantes são as noitadas boêmias nos bares e becos, onde os amantes do bom copo deságuam  sonhos ou mágoas.  Para eles, a noite será sempre uma criança.
Por tudo isso e muito mais, quase podemos ouvir os protagonistas  desses cenários,  dizerem em prece sussurrada para que os anjos atendam: vamos viver intensamente esta noite, antes que o dia chegue.  E nesses sagrados ou profanos  momentos pode-se até desejar a finitude. Impossível porem, fugir da realidade do amanhecer de cada dia. Ele nos aguarda e nos diz compassivamente: acalma-te! Novas noites e novos amanheceres virão. É   assim o ciclo da vida, dos dias e das noites.

MUROS DO INCONSCIENTE

Muitos de nós somos especialistas em criar muros onde aparecem nitidamente pixados a intolerância, o preconceito, o amargor do silencio, a arrogancia, a maledicencia e o egoismo...Essses muros tornam-se intransponíveis com o passar do tempo...Alem destes, temos outros: o medo,  a insegurança, a  dificuldade para perdoar... Por algum motivo erguemos esses muros e eles  vão ficando semelhantes as muralhas de pedras das grandes fortalezas. É possível derrubá-los?

Desconfio  dos determinismos de qualquer natureza assim como da imutabilidade do caráter humano. Acredito que apenas o conhecimento é incapaz, em larga medida, de lapidar o individuo. Acredito sim no auto conhecimento e no exercício consciente  para a mudança. É assim que construimos muros de palhas, menos resistentes e mais fáceis de serem transpostos quando por  alguma  razão pisamos feio na bola.    Falando em  muro lembrei-me  de um que dividia o quintal da casa  de meus pais  com o do nosso vizinho, o   sinistro SR. Pedro Banana. Era feito de palhas da palmeira do açai . Era muito frágil, mas eu e minhas irmãs  não ousávamos transpô-lo. Dizia-se que a falecida esposa do SR. Pedro estava sepultada no quintal. Talvez fosse tudo invencionice de meus pais para impedir que fossemos bisbilhotar onde não éramos chamadas e impor-nos limites. O medo era maior que a curiosidade .Para mim, transpor o muro significava encarar a falecida como a guardiã da propriedade do marido.     Com o tempo aprendi que a   fragilidade dos muros de palha pode revelar-se  nossa fortaleza  à medida em que temos coragem para  desconstruí-los em busca  da nossa verdade interior. 

VESTIDO VERMELHO.

Era vermelho, de  seda pura, o  mais belo que já havia possuído. Guardava com todo carinho, embrulhado em papel celofane. Aquele vestido guardava recordações de um tempo  em que os toques sensuais em corpos  aprendizes nas artes do amor  eram  sutis e refinados. Gostava de lembrar das mãos amadas deslizando através da seda, em seu corpo ávido de desejos.E no tempo certo, lembrava da primeira vez em que fora despida lenta, suave e apaixonadamente pelas mãos do amor amante e do vestido vermelho jogado no chão. Entretanto,  a lembrança que mais lhe marcava a alma era  daquele dia em que pedira para a mãe passar o vestido. Iria a um baile e já antevia os momentos de prazer. Por um descuido, a mãe passou o ferro muito quente e queimou um pedaço do vestido. Desolação total, choro, desespero, raiva! E a mãe calmamente:  vou remendar essa tolice, para de chorar! E com  um retalho rendado da mesma cor do vestido, aplicou um coração bem no pedaço onde havia o estrago do ferro quente e noutros pontos estratégicos .O vestido ficou até mais bonito do que antes e no baile,  não faltaram os elogios para o que hoje em dia chamamos de customização ou reciclagem.

CONVERSANDO COM O LEITOR.

Tenho um critério muito particular para gostar de ler algo: eu preciso conversar com o autor. Dificilmente consigo essa sintonia se o texto for hermético e utilize muito a meta linguagem ou as agendas ocultas, ou seja, as entrelinhas. Isso é para intelectuais. Para o leitor comum, só é possível mergulhar no texto  se este traz respostas ou questões que agucem a imaginação e lhe façam visualizar as cenas descritas.Claro, não estou me referindo a livros técnicos, estes lemos por obrigação, para alicerçar nossa profissão. Refiro-me a romances, artigos, crônicas,  ensaios etc e até mesmo na poesia. Outro cuidado, é o respeito a norma culta. Não precisa ser empolado, mas, concordância verbal, grafia correta,  linguagem enxuta, sem prolixidade, são  outros critérios  que me agradam. Talvez um outro critério seja escolher o público-alvo da leitura. Não daremos a uma criança de dez anos, um romance de Jose Saramago. Monteiro lobato seria mais adequado.

CARTA PARA MARIANA.

Hoje é 24  de dezembro de  2030. Voce está com 25  anos. A mesa para a ceia de natal  está posta. Tenho certeza de que todos estão em plena alegria.  Com certeza  está casada e já me deu bisnetos. Não poderia deixar de lhe perguntar se  você guardou os  álbuns de fotografias, os CDs,  aqueles albinhos em que estavam todos os cartões postais e de natal que eu colecionava e que deixei para você ser a guardiã? E os discos de vinil?  E  seu pai, o meu Jean e Ronise, sua mamita?  Como estão? Voce ainda   tem  cachorros? Lembra do dia em que disse se papai e mamãe brigassem  com você,  iria para “Gaciosa” e não voltava nunca mais?  Está realizada na profissão que escolheu? Lembra quando disse que não queria ser professora?  Você só tinha três aninhos. E eu lhe chamava de minha morena de olhos cor de mel? Voce era linda!  Ainda vai na Graciosa? E seu tio Luiz por onde anda? E Rodolfo, com seus belos olhos azuiz? Roni e  Queca já estão velhinhos? Não, acho que não! Com sessenta e poucos anos, já não se é velho. Isso era coisa do século XX. Minha princesa, lembre  sempre do quanto eu e seu Vô amávamos você. Deixo-lhe um abraço, deste distante ano de 2013, em uma noite em que a lua banhava o meu jardim e eu pensava na minha finitude. A única coisa que eu pedia naquele momento era que Deus me permitisse ver você e Rodolfo completarem quinze anos. Sua vò  Conceição.

MUDEMOS   NÓS.

Imaginemos uma cidade com 12 milhões de habitantes dos  quais dez milhões fumam apenas uma carteira de cigarro por dia. São  quarenta milhões de  pontas de cigarros jogadas nas ruas.   Para onde vão esses filtros? Para os esgotos,  contribuindo para o entupimento dos bueiros. Quando você está na rua e após pitar o seu cigarrinho, onde joga a bituca? Tenho uma amiga que anda com um potinho de maionese na bolsa. Quando apaga o cigarro, joga lá dentro a  mal cheirosa bituca.

Em São Paulo, os serviços de coleta não dão conta de  tirar o lixo jogado  nas ruas, sem nenhum cuidado  e muito desse lixo vai para os rios da cidade. A prefeitura poderia colocar enormes caçambas coletoras, mas adiantaria?  Quando apenas uma parte  da população faz o dever de casa e a outra é reprovada no quesito responsabilidade pessoal e social é difícil ter uma cidade limpa. No final das contas, pagam  todos  pelo ônus das mazelas ambientais.

Em uma cidade nortista,   vi um feirante  jogando toda espécie de detritos  bem na entrada da feira e no chão, fazendo a festa dos urubus. Nessa mesma cidade, depois de quarenta anos persiste uma rua com um enorme valetão, cujo acesso para as casas é feito por umas pontes de madeira. Penso que  não houve mobilização para mudar a paisagem da rua.

Gostaria muito de escrever romanticamente sobre como mudar a cidade, a minha cidade, mas não saberia fazer isso hoje diante de tanta indelicadeza por parte dos habitantes  para com suas cidades.Para que haja mudança, nós é que precisamos mudar. Há muitas estratégias para provocar a mudança. Um delas é começar pelos hábitos saudáveis  e ecologicamente corretos, entre os quais, dar um destino  correto para as sobras do famigerado cigarro. Outro, é  dar o  destino adequado ao lixo, seja  orgânico ou reciclável. Ter tambem uma sacolinha dentro do carro, evita-se jogar lixo na rua. Quem agradece? O meio ambiente e todos nós.

ONDE ANDAM A INOCENCIA E OS INOCENTES?

Em se tratando de seres humanos penso que os inocentes só podem ser encontrados nos berçários  das  maternidades do mundo inteiro.Esses ainda não foram contaminados pelas intrusas conveniências da vida que nos levam gradativamente a perder a nossa inocência. O que  pede o grito dos inocentes?  Quem são os inocentes, além dos recém nascidos? Aqueles que clamam pela misericórdia da natureza que eles mesmos ajudam a destruir? Ou aqueles  que clamam pela ética, pela transparência  mas não devolvem um  mísero troco que lhe foi dado a mais? Ou ainda os que saem em passeatas  contra as drogas, mas se aliam com a traficante ao adquiri-la?  Ou quem clama pela justiça social, mas explora e oprime seus serviçais? Ou os que usam o poder para  humilhar, denegrir, desqualificar?  Inocentes?  Eu diria que é preciso sair com uma   tocha  de luz nas ruas, a procurá-los. Há uma longa lista  dos atos e fatos que nos roubam a inocência e nos impedem moralmente de gritar. Entretanto, desconfio muito das  inevitabilidades, até por acreditar que  nós seres humanos somos duais ou múltiplos e assim sendo, trazemos em nós  muitas incoerências.Já disse também que acredito na força do autoconhecimento o que me leva  a pensar que podemos retomar sim e sempre, o nosso direito de gritar pelo que  é certo e justo, vencendo os nossos limites e abrindo portas para possibilidades  em que possamos dizer diante do espelho: neste caso, sou inocente  e meu grito há de ser ouvido.

ONDE FICA O INFERNO?

Quando criança ouvia dizer que o inferno era uma enorme cratera, muito, muito funda, para onde ia a alma do pecador. Então eu perguntava onde ficava esse lugar e quem ia para lá. Minha mãe dizia: quem é guloso, quem mente, quem bate nos irmãos menores, quem é guloso ,  quem não obedece aos pais e mais um rosário de pecados. E que esse lugar que estava sempre ardendo em fogaréu, ficava em um ponto qualquer da terra. Claro, eu tinha pavor de morrer e ir para lá, pois eu tinha todos esses pecados. E de noite eu pedia: papai do céu, não me deixe ir pro inferno. Prometo ser boazinha amanhã. Cresci, tornei-me adulta ainda cultivando o pecado da gula por uma comida saborosa, mas a visão que tinha do inferno, mudou. Não acredito mais na cratera em fogaréu, mas  no inferno particular de cada um. E cada um sabe do seu.

AS NOSSAS PORTAS.

Abra a porta e a janela e vem ver o sol nascer...Porta aberta, essa porta não se fecha, contra ela não há queixa, são os braços de Jesus...Duas musicas  que nos remetem  aos nossos sentimentos, aqueles  guardados cuidadosamente atrás de portas bem fechadas ou aqueles que deixamos fluir pelos oásis da vida, sem a preocupação de aprisioná-los nos escaninhos do medo e do julgamento dos outros. Alguém me disse certa vez que meus olhos eram portas  abertas que escancaravam minhas mais primitivas emoções, tal como  a raiva por exemplo. O tempo nos ensina o domínio dessas emoções, mas abrir as portas da mente e do coração  para o novo, para o  inédito ainda é e sempre será, um desafio para todos nós. Gosto imensamente de viajar, por mim,  daria volta ao mundo, mas nada melhor do que abrir minha porta e adentrar no aconchego da minha casa.Aí é meu porto seguro.E essa porta eu abro para os que amo.

DONA  ISABEL

Era uma viúva, dona de umas terras, as   quais arrendava para os pequenos plantadores. Era elegante para os padrões da época, com os cabelos presos num coque e brincos penso que de ouro pendurados na orelha.  Tinha um filho único chamado Lourival, se não me engano. Corria o boato de que ela tinha um ciúme louco do filho e não deixava nenhuma  moça do lugar, por  os olhos nele. Naquele tempo eu ainda era menina, nem cheguei a conhecer o tal mancebo.  Dona Isabel tinha um apelido,  Velha Caroara. Em Santa Catarina, segundo o meu marido, caroara é a pessoa que gosta de fazer intrigas, fofoqueira, que fala mal de todo mundo. Alem disso corria  outro boato, de que Dona Isabel virava matinta  pereira nas noites  de lua cheia às  sextas feiras.  Uma bela tarde de verão, dessas em que o sol fica à pino, eu e minhas irmãs estávamos empoleiradas em cima de uma árvore, bem perto do caminho ou estrada por onde se transitava naquele tempo. De repente divisamos    Dona Isabel, sempre com sua sombrinha protetora. Ela caminhava com passo miudinho, parecia  uma põe- mesa, de tão empertigada que era.E então, resolvemos azucrinar  a pobre mulher e gritamos em coro: Velha Caroara, matinta pereira do Igarapé Açu de Cima!  Dona Isabel proferiu todo o estoque de palavrões  do seu arquivo.E nós, é claro com toda a falta de educação, caímos  na risada. Essas eram transgressões  que  cometíamos  naquele tempo e que  se nossa mãe descobrisse, vara de marmelo nas canelas. E foi o que aconteceu, pois dona Isabel não se fez de rogada e foi  contar a nossa travessura para minha mãe  e aí, pagamos pela nossa falta de respeito para com os mais velhos. Dona Isabel compõe a minha galeria dos   meus tipos inesquecíveis.


Obs: a matinta pereira era um pássaro noturno  com um assobio apavorante, mas naquele tempo dizia-se que era uma sina  dada como castigo a uma pessoa.  Igarapé Açu de Cima ainda é o povoado onde eu nasci.

Autora: Conceição Gomes – Curitiba/PR

Página da autora:


Número de acesso inicial: 160.535

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A Quinzena do Autor: Alberto Vasconcelos

Autor: Alberto Vasconcelos



Nasci numa festa de aniversário... 
Dia de muita chuva...
Cheguei para o almoço... 
Virgem no zodíaco, macaco (de madeira) no chinês.

Dentada na língua, coqueluche, sarampo e caxumba na infância, amigdalite operada na adolescência; catapora, circuncisão, lesão do manguito rotador do membro superior direito e vasectomia, já adulto.

Fui menino comportado, obediente, amorfo... 

Brinquei de pião, papagaio, badoque (fabricado e destruído por arrependimento diante da agonia do primeiro animal atingido), bola de gude, garrafão, bola queimada, barra bandeira... 
Raramente futebol...

Colecionei borboletas (o fungo quase destrói a pele das mãos e braços). Fabriquei gaiolas, criei preás e passarinhos, peguei Beta no riacho Guarulhos (morto pela poluição), roubei frutas em quintais, mel de abelhas do apiário do Padre Estevão (convento da Sagrada Família), aprendi cerâmica de torno, tomei banho no riacho Uchoa (hoje esgoto a céu aberto)... 

Morei no Barro até meu casamento em 1970.

Católico, cantei no coro e fiz parte de equipe de liturgia.

Fiz teatro durante onze anos e fui professor de História do Brasil.

Sócio número quatro do Umuarama Tênis Clube do Barro.
Dançadorzinho como um peste estive sempre presente em assustados,
quadrilhas juninas (as autênticas), bailes de formatura.

Fui presidente do Grêmio Literário (a ditadura proibia Diretório de Estudantes) do Colégio Porto Carreiro onde formei-me Contabilista (orador da turma).

Beijei, namorei (ainda não se “ficava”), noivei, casei, duas filhas, duas netas, separei, noivei outra vez, divorciado e hoje casado com Márcia Adriana Barboza, consóror do Recanto.

Desde abril/12, mudei para Santo André/SP.

Fui comerciário, securitário, industriário e aposentado.

Bacharel em Ciências Biológicas pela UFRPE (orador da turma).

Em janeiro 2011, dei fim às minhas plantas, (- quanta pretensão! Elas não eram minhas, apenas moravam comigo) não cultivo mais orquídeas (apesar de me considerar orquidófilo) e desisti de fazer bonsai.

Sou ateu convicto, gosto de viajar, de estudar biologia, de escrever,
de ler, de pintar, de modelar, de poesias, de música erudita, folclórica, regional e ópera, de política, de conversas inteligentes, de ouvir e de contar histórias, de beber cerveja, vinho, cachaça e de cozinhar.

Tenho o mau costume de acreditar nas pessoas... 

Amigo é amigo; inimigo é inimigo. (Incondicionalmente). 

O atual foco da atenção intelectual é a influência da estrutura antropológica do imaginário no comportamento humano.

Sempre gostei de ler, de conversar, de escrever, de ouvir e de contar histórias...

O que escrevo, são "causos" que ouvi, sonhos ou histórias verídicas vividas por mim ou por conhecidos meus...

Vez por outra, histórias inventadas mesmo, situações forjadas em ambientes onde nunca estive e nem sei se existem. Talvez memórias do DNA, herdada dos milhares de ancestrais, que viveram antes de mim e dos quais carrego os códons que a ciência, ainda, não sabe interpretar.

Agradeço a todos que se dispõem a ler o que publico e gostaria, se possível, de um comentário para poder melhorar, porque sempre há o que corrigir.

O que escrevemos e publicamos são os filhos do nosso intelecto e é bom sabermos como esses filhos estão se comportanto em sociedade...


ARTIGO – classificação: Geral

ENERGIA VITAL
Na total escuridão da tuba uterina, o espermatozoide “nada” em direção ao óvulo, atraído pelos sinais químicos, intermitentes, como os de um farol.

O flagelo freneticamente agitado, consome a cada movimento a provisão de adenosina trifosfato (ATP), que foi acumulada na espermiogênese, para que as mitocôndrias transformassem a energia química em energia cinética.

A penetração, facilitada pelo cone proteico, desencadeou o estímulo que alterou a polaridade da membrana celular do óvulo e, em obediência à Teoria da Evolução, onde apenas o mais apto sobreviverá, os espermatozoides retardatários serão eliminados pelos fluidos uterinos, depois de mortos pela inanição decorrente do esgotamento das reservas alimentares.

No microcosmo celular, as cariotecas se desfazem e os cromossomas são liberados. Os lisossomos digerem os restos do espermatozoide e as fibras de actina do cito esqueleto do óvulo formam o fuso acromático, onde os cromossomas alelos formarão as duplas.

Uma vez pareados, realizam o “crossing over”, o maior artifício da natureza, para que cada ser seja único, genética e psicologicamente.

Nesse fenômeno os genes trocam sequências e a combinação resultante torna o ser diferente de todos outros que já existiram, existem ou existirão.

Refeita a carioteca, o ovo está pronto.

Lentamente, impelido pelo movimento ciliar da tuba uterina, o ovo recém formado é guiado para o fundo do útero onde o endométrio, escamoso, aguarda a nidação.

Agora pleno de energia vital esse ser unicelular toma sua primeira decisão.

Multiplicar-se.

Multiplicar-se milhões de vezes para formar um ser humano que, na idade adulta terá em torno de cem quatrilhões de células, iguais no genoma, mas com quase duzentas formas diferentes para atender funções específicas.
Imensos grupos de células iguais irão formar os tecidos, os órgãos, os aparelhos, os sistemas, obedecendo aos modelos e padronagens, definidos por ensaios, erros e acertos, em sucessivas gerações desde os primatas inferiores.
Todos os passos serão, outra vez, executados nos mínimos detalhes.

Os genes desfazem a forma espiralada e duplicam-se. Seguem-se indefinidamente, as fases prófase, metáfase, anáfase, telófase e as células filhas vão se aglomerando para que o embrião adquira a forma de amora.
Da mórula, o passo seguinte é a blástula para daí surgirem os folhetos embrionários no fenômeno chamado gastrulação.

Realizada a nidação, formam-se o saco amniótico e a placenta, ponte entre a gestante e o embrião, por onde transitarão os nutrientes, anticorpos, hormônios, gases O² e CO² e as toxinas resultantes do metabolismo do novo ser.

Desde o momento da fecundação até a morte celular total, o ser humano funciona como um gerador, transformando as energias que recebe numa energia de padrão próprio, único, cujas ondas se propagam em todas as direções tal qual a luz de uma vela.

Consideremos que um ser humano viva por sessenta anos, desde o momento da fecundação até a morte celular. A energia emanada de seu corpo tem sessenta anos luz de comprimento e permanecerá vagando no universo por tempo indeterminado, até que, como a luz das estrelas, seja captada por algo e transformada noutro tipo de energia, conforme preconiza a Lei de Lavoisier.

Pela teoria de Einstein, energia é matéria em movimento descrita pela fórmula E=MC², onde “M” é a matéria e “C” é a constante universal da velocidade da luz (+/- 300.000km/s) elevada ao quadrado. O mesmo Einstein define o universo como “uma esfera reversa”.

Então essa energia emanada pelo ser humano, quando chegar ao limite do universo, vai refletir e, no sentido contrário, fatalmente atingirá a Terra.

Os seres vivos, em menor ou maior escala, são suscetíveis às variações das cargas energéticas, podendo sofrer danos em suas estruturas, conforme pode ser observado nos casos de “Olhado” ou “Quebranto”.

Esse desequilíbrio energético, que pode levar o organismo à morte, é objeto de estudo desde a mais remota antiguidade pelos asiáticos, notadamente chineses e indianos, cujas práticas da medicina popular (não alopática) estão muito bem documentados nos textos do Do-in, do Feng Shui e da Acupuntura.

O legado mouro, quando do domínio na península Ibérica, foi trazido pela colonização luso-espanhola e aqui, no Novo Mundo, miscigenada com a cultura dos nativos e dos africanos trazidos para o trabalho nas lavouras, no fenômeno que Gaston Bachelard e Gilbert Durand chamam de “Bacia Semântica”.

A troca de energia entre os seres, largamente explorada em rituais religiosos, em sacrifícios, imposição das mãos, passes, benzeduras, bebidas, unguentos, banhos, defumações e correntes de orações, muitas vezes surtem o efeito desejado porque, também pela fé, esses atos liberam os estímulos cerebrais para a produção de hormônios ou o desencadeamento das ações do sistema imunológico do indivíduo afetado pelo mal.

Há pessoas que, por treinamento ou espontaneamente, são capazes de identificar o desequilíbrio energético em seres ou ambientes.
São os conhecidos “médiuns” que, supostamente, fazem a ponte entre os seres vivos e as diversas frequências energéticas em constante movimento pelo universo.

Não há prova científica desse poder de decodificação motivo pelo qual, há muito charlatanismo no campo das “Ciências Ocultas”, mas como disse Miguel Cervantes Saavedra (in Dom Quixote de La Mancha), “Yo no creo em las brujas, pero que las hay, las hay.”

CARTA

SOBRE ATEÍSMO
Caríssimo amigo PAULO MORENO, em atenção ao seu pedido deixado no comentário da crônica Lembrança XII, acredito que falar sobre ateísmo ou dizer-se ateu é muito fácil, entretanto tornar-se ateu é um processo lento que demanda muitas horas de estudo, coragem para “afrontar as verdades” aceitas pela esmagadora maioria e determinação para permanecer na condição de pária.

Um ateu sempre foi, é e será visto como excluído da sociedade ou portador de doença infectocontagiosa, ou criminoso capaz de todas as maldades. Um ser que desconhece o significado do sentimento amor, que é inescrupuloso e prestes a cometer as mais vis atitudes, incapaz de ter quaisquer gestos de bondade para com o próximo, vez que, por ser um sociopata egocêntrico, nada nem ninguém tem o mínimo valor, sendo também, potencialmente, pedófilo, libertino, iconoclasta, apátrida, homicida, ladrão...

Mas é livre.

E essa liberdade que o conhecimento proporciona é quase sempre invejada pelos teístas que apesar de cumprir todos os preceitos religiosos, como pagamento de dízimos, abster-se de alimentos ou diversões, levando uma vida austera e cheia de renuncias e compromissos para com a religião, têm os mesmíssimos problemas ou doenças que os infames ateus.

É bom que se diga que não existe nenhum livro explicando o que é o ateísmo (sem que seja tendencioso) nem um simples manual do tipo, ATEÍSMO SEM MESTRE EM 10 LIÇÕES, portanto as minhas conclusões sobre a crença nas falácias dogmáticas, estão descritas nos textos já publicados no Recanto das Letras: 1 – Jesus Imaginário (T1875712 de 19.10.09); 2- Terapia de Vidas Passadas (T1641300 de 10.06.09); 3 – Energia Vital (T2748909 de 24.01.11).

Um dos primeiros argumentos dos teístas para justificar a existência de deuses é o fato de que em todas as culturas, os mitos e as lendas, “explicam” o surgimento do homem; falam da grande inundação; do extermínio pelo fogo; pragas para dizimar plantações e do salvador que resgatará os escolhidos para a glória da vida eterna.

O ser humano, por ser dotado de raciocínio abstrato, procura entender o porquê da existência das coisas que o cerca. Nosso cérebro funciona fazendo comparações e associações entre as coisas novas e tudo aquilo que foi visto desde o nascimento.
Exemplo: som=> palavra=> conceito
pa- lá- ci- o => palácio=> casa grande;
á- gua=> água=> líquido; etc.

Entretanto existem coisas para as quais não existem referências anteriores e, para explicá-las, há o recurso abstrato do sobrenatural. Uma entidade intangível e criadora é a explicação óbvia para o surgimento de tudo aquilo que é, até então, inexplicável.

Criou-se assim o deus e com ele, todas as artimanhas capazes de manter a comunidade unida e controlada. Entram nessa dança os fenômenos naturais como os oceanos e rios, as tempestades, o fogo, os astros, as florestas, etc.

As sociedades atuais são descendentes daquelas que assistiram ao fim da última glaciação, mais ou menos, dez mil anos antes do presente. As camadas de gelo, com quilômetros de espessura, foram derretendo e as áreas baixas sendo invadidas. Esse volume foi de tal magnitude que a zona intertidal brasileira, ocorria mais ou menos a cem metros da atual.

Não há registro de cidades americanas sendo “engolidas” pelas águas, mas há de áreas de caça e de povos que ficaram ilhados e destruídos assim como as cidades da mesopotâmia, do entorno do Mediterrâneo e do sudoeste asiático.

É o dilúvio referido nos textos Vedas, chineses e assírios/caldeus com a figura de Utnapishtim, metamorfoseado no Noé (bíblico) e em muitas lendas das tradições orais dos povos do mundo em todos os continentes. Muitas lendas falam em destruição de povos e cidades pelo fogo, sem ênfase para os movimentos tectônicos que originaram os vulcões responsáveis por essas extinções, porque não há interesse religioso nessa simplificação.

Uma das coisas mais comuns para o intelecto humano, é a associação entre  um fenômeno natural e a ira de um deus raivoso, mas quando você faz a análise desses textos à luz das circunstâncias históricas, é capaz de detectar as verdadeiras mensagens subliminares neles contidas como fizeram os evangelistas, que foram obrigados a escrever o que fosse conveniente aos interesses de Constantino.

Desses textos pseudo religiosos, o mais comum para nós é a bíblia, cujo único valor é ser o registro da ética e da moral do povo judeu, quando saiu do Egito, em torno de seis mil anos antes do presente.

Dela há que se destacar, além dos citados na crônica, os versos de Mt. 13:11 a 16 e o Gn. 3:19 que acaba de vez com essa historinha de vida eterna.

E foi assim, lendo e interpretando os textos à luz do contexto histórico que me livrei dos dogmas, das perseguições, das culpas e barganhas religiosas.

CONTO – Classificação: cotidiano

DOCE DE ARAÇÁ 
- Vicência! ... Oh! Vicência!...
- O que é Sanana?
- Eu tô com vontade de comer doce de araçá...
- Ave Maria Sinhá! Adonde é que eu vô arrrumá doce de araçá prá sinhá cumê?
- Acabou tudo foi?
- E apois! O resto que tinha o coroné mandou botá na lata prô nhô Venâncio levá.
- E o coronel não sabe que papai não pode comer doce?
- Sabê ele sabe, mas quem é qui pode negá as coisa a nhô Venâncio? Quando ele cisma...
- Mas eu quero comer doce de araçá. Desde manhãzinha que tô com uma vontade doida. Estava me segurando porque tô muito gorda, mas eu acho que é o bucho que tá pedindo.
- Se é desejo tem que fazê logo se não faz má à criança.
- Vai apanhar araçá Vicência... Faz o doce prá mim.
- Já vô fazê Sanana. Sinhá num sabe que eu faço tudo. Desde que vossa mãe foi pro céu, quem cuida de vosmecê num sô eu?
- Mas eu queria agora, Vicência...
- Eu faço pouquinho. Num instante fica pronto.
- Ah! não. Pouquinho não. Eu quero um tacho cheio pela boca.
- Se Sanana comê muito pode improvocá. Aí em vez de fazê bem vai fazê é má.
- Vai Vicência, vai... Faz meu doce.
- Espere um pouquinho, já já tá pronto.
Sentadas no alpendre da casa grande, Sanana grávida de sete meses, na cadeira de balanço bordando uma camisinha de cambraia de linho. Vicência no chão com a almofada de 25 pares de bilros entre as pernas, fazendo as rendas que seriam aplicadas nas roupinhas do neném. (A linha de algodão ela mesma fiara na roca mais que centenária) Dalí, as duas podiam ver Antonio Fabrício, primeiro filho de Sanana, brincando de jogar carrapeta com dois meninos escravos praticamente da mesma idade que ele. Sem levantar do chão, Vicência gritou;
- Bastião,  Gerê!...
Atendendo ao chamado, os meninos interromperam a brincadeira e vieram até a escadaria.
- Inhora madrinha, disseram em coro.
- Vai os dois caçá araçá. É prá trazê os maduro. Leve a perdoe. Vou cuspir no chão, é prá vortá antes do cuspe secá.
- Posso ir também, minha mãe? Perguntou nhô Toinho com voz chorosa.
- Vá! Pode ir.
- Sanana, o coroné pode num gostá do sinhozinho tá no meio do mato com esses moleque.
- Tem nada não. Eles vão voltar logo e Nossa Senhora não vai deixar acontecer nada com eles não.
Gerê, o mais esperto dos dois escravos correu, por fora da casa grande, até a cozinha e pegou a cesta de vime que fecha quando se pega nas duas alças ao mesmo tempo e que era artefato indispensável dos frades pedintes de esmolas.
[O costume nessa época era pedir perdão, ao frade, quando o solicitado nada tivesse para dar. Daí a frase “rogo que me perdoe por não poder ajudar” foi aglutinada para “perdoe” e a cesta ficou com o nome]
No rastro de Gerê, nhô Toinho e Bastião também saíram em desabalada carreira.
Logo após o primeiro talhão de cana, havia uma capoeira preservada onde se encontravam com facilidade, araçás, pitomba, mangaba, gogoia, cambará, ubaia... Mais para dentro do mato um pé enorme de cajá com seu tronco rugoso era um convite constante para subir nele e apreciar, lá de cima, a vista de quase todo engenho com sua chaminé de tijolo vermelho, o rio, a roda e o pilão d’água, a casa de farinha, a casa de purga, a capelinha caiada no alto da colina com as cruzes das sepulturas de escravos do lado esquerdo (diziam que de noite tinha alma penada vagando por ali), mas dessa vez não podiam subir na árvore. Os araçás estavam grandes e saborosos. Uma jaca madura despencou do pé e causou um grande susto nos três meninos quando se espatifou no chão. Entre risos se empanturraram com os bagos amarelos, mais doces que mel. Com a perdoe quase cheia, voltaram para a casa grande.
- Me dê logo um bocado desses Vicência, pediu Sanana.
- Deixe lavá premeiro sinhá.
- Carece não. Eu quero assim mesmo. E Sanana encheu a boca com as frutinhas de sabor acridoce.
- Sinhá vai improvocá...
Dizendo isso, Vicência levantou do chão e foi para a cozinha preparar o doce. Pegou o tacho de cobre na despensa e levou para o lado de fora. Depois de examinado, viu que precisava ser areiado para tirar a grossa camada de azinhavre que deixava azulado todo o interior do utensílio.
- Felicidade, cace limão galego e vá areiar esse tacho no rio. Vorte logo prá me dar adjutóro nos araçá.
Vicência voltou para a cozinha e despejou o conteúdo da perdoe dentro de uma gamela grande com água. Com faca de bambu, para não empretar, foi limpando as frutinhas, tirando a casca, abrindo ao meio e raspando as sementes para dentro de outra gamela. Uma vez limpas e sem sementes, as bandinhas eram colocadas noutra gamela com água enquanto o tacho de cobre estava sendo lavado.
Felicidade foi correndo até o pomar, pegou dois limões dos grandes e seguiu para a beira do rio. Colocou um punhado de areia fina molhada no meio do tacho junto com um limão e pisou com toda força para estourar a fruta que iria servir de esfregão. Depois de enxaguado, repetiu a operação e o tacho ficou brilhando como se fosse feito de ouro. O enorme calor da tarde em contraste com a água fria do rio era um convite ao mergulho que Felicidade não teve forças para resistir. Com o vestido colado ao corpo e o tacho na cabeça, a moça subiu o barranco. As formas exuberantes da adolescente vinha de há muito tirando o sono de Bento, o capataz, que estava no alto do barranco admirando o espetáculo da pele escura em contraste com o pano branco molhado que deixava à mostra todos os detalhes.
- Venha cá negrinha.
- Vô não senhor.
Felicidade fez menção de correr, Bento guiou o cavalo para impedir a passagem.
- Vou lhe comer agora...
Enquanto Bento descia do cavalo, Felicidade soltou o tacho e correu para a casa grande gritando,
- Mãe, me acuda pelo amor de deu!
Bento tornou a montar no intuito de agarrar a negrinha pelos cabelos antes que alguém pudesse ouvir. Felicidade vinha correndo entre dois talhões de cana já bastante altos, quase no ponto de corte. Felicidade era ágil e conhecia muito bem o lugar onde nascera. Apesar do medo que estava sentindo, entrou num talhão e se escondeu no meio da palha seca do canavial. Bento desesperado entrou no talhão do lado contrário e estava como louco, fazendo o cavalo pisotear as canas e gritando...
- Vou lhe pegar, vou lhe pegar...
Só parou quando deu de frente com o cavalo do Coronel.
- Que é isso homem? Você endoidou?
- Foi, foi, foi o guará, Coronel. Foi um guará que eu vi.
------------------
Vicência terminou de limpar todo araçá e nada de Felicidade voltar. Chegou à porta da cozinha e gritou...
- Bastião, Gerê...
- Inhora madrinha...
- Vá no rio e diga à Felicidade prá trazê o tacho. Já tá bom de tanto lavá.
Os dois meninos foram correndo. Encontraram o tacho largado no barranco, mas nem sombra de Felicidade. Voltaram com a novidade: Felicidade havia sumido.
- Minha Nossa Senhora, Felicidade deve de ter morrido no rio.
- Pare com isso Vicência. Mande chamar o Coronel. Meu doce já está pronto?
- Ainda não sinhá...
O coronel mandou recado para que o pescador, seu velho fornecedor de carito, procurasse para ver se encontrava o corpo da negrinha que todos julgavam ter morrido afogada. Somente Bento, o capataz, insistia em que Felicidade havia fugido.
Vicência voltou para a cozinha e cumprindo sua sina de escrava, obediente como cão, colocou no tacho, uma cuia de açúcar e meia de água misturada com as sementes. O  fogo alto rapidamente ferveu a mistura separando as sementes da parte macia que se desfez na calda que foi despejada na gamela e desta, através da peneira de volta para o tacho agora com as bandinhas do araçá, outra cuia de açúcar e um punhado pequeno de cravos da índia. A colher de pau de cabo longo não parou de mexer até que o doce apresentasse o brilho dourado e a calda ponto de fio. O tacho foi colocado na tina com água para o choque térmico finalizar o cozimento. Do tacho para a compoteira de cristal.
Sanana sentada no banco longo da cozinha, comeu toda a raspa do tacho. Comeu também quatro taças bem cheias do doce com a sofreguidão de um náufrago. De pé, enchendo a quinta taça, sentiu tontura. Sentou e pediu água. Vicência pegou a moringa no peitoril da janela e antes que Sanana bebesse o primeiro gole, vomitou tudo o que havia comido, sujando o chão da cozinha e o vestido. Segurando o estômago disse com voz sumida...
- Ai!... Que dor Vicência...
- Eu disse prá Sinhá que num comesse nessa danação. Agora tá aí, com dô...
- Mãe!
- Felicidade minha fia, onde vosmecê tava?
- Tava iscondida no mato. Seu Bento queria me pegá-me. Disse que ia me cumê.
- Que história é essa? Perguntou o Coronel que estava comendo uma taça de doce.
- Foi coronel. Quando eu tava areiando o tacho.
- Esse cabra parece um jumento no cio. Vou mandar dar-lhe uma pisa de cipó de boi agora mesmo... guará, pois sim que era guará...
O coronel saiu da cozinha deixando as três mulheres mudas, sem entender o porquê da última frase.
Qual a relação do que havia acontecido com o guará que estava comendo as canas maduras?
---------------------------------------
O dote de casamento que o Coronel da Guarda Nacional Fabrício de Miranda recebeu ao casar com Sanana, incluía o escravo Ignácio, excelente reprodutor, cujos filhos machos tinham boa compleição física e podiam, a partir dos dez anos, serem incorporados aos trabalhos na lavoura e as fêmeas, muito valorizadas pela beleza de corpo, boas parideiras e com possibilidade de serem alugadas como amas de leite devido à grande produção além de boa disposição para os trabalhos tanto domésticos quanto no campo.
O Coronel cobrava cem mil réis para que Ignácio emprenhasse escravas de outros senhores. Era prenhez garantida. A mocinha vinha para o engenho na semana seguinte depois da regra e ficava na senzala cruzando com Ignácio, uma ou duas semanas. Se o dono da escrava tivesse sorte poderiam nascer gêmeos, como já havia acontecido diversas vezes. Ignácio tinha mais de cem filhos espalhados pela redondeza e na capital da província, nascidos quando ele pertencia ao Coronel Venâncio, pai de Sanana, e principalmente nesses últimos dez anos que estava em poder do Coronel.
Por causa disso, Ignácio tinha o privilégio de morar numa parte da senzala separado dos demais escravos. Dormia numa tarimba com colchão de palha enquanto os demais dormiam em esteiras.
A convivência, fidelidade e dedicação fizeram de Ignácio a extensão do braço do Coronel.
Sob as ordens desse, Ignácio com mais dois escravos pegaram o capataz e o amarraram no mourão de prender bicho brabo. O Coronel mandou tirar a roupa do capataz e ordenou sessenta chibatadas.
- Isso é para vosmecê aprender a respeitar minha casa. Escrava minha só cruza quando eu mandar.
E para Ignácio,
- Deixe ele amarrado ai até amanhã no cagar dos pintos. Bote um cabra tomando de conta. Não ganha nem água de beber.
Bento aguentou calado as primeiras chibatadas, depois gemia e por último respondia com grito de dor ao assovio do cipó de boi, seco e duro como vara de bambu.
Depois da última chibatada o Coronel ordenou.
- Sacuda água de sal nas feridas para não arruinar...
-----------------------
Sanana, depois do doce de araçá havia vomitado diversas vezes e Vicência estava preocupada quando perguntou ao Coronel que era que iam fazer.
- Dê álcool canforado para ela cheirar e bote minha ceia. Onde estão Toinho e Suzana. Quero os dois na mesa.
Depois da oração de agradecimento, a ceia transcorreu em silêncio, pois o Coronel não admitia crianças conversando durante as refeições. A sala estava fracamente iluminada por uma candeia sobre a mesa.
- Vicência, acenda as outras candeias. Quero essa sala bem iluminada.
Obediente, a escrava foi buscar as outras candeias. Eram duas peças de bronze com três bicos alimentados por óleo de rícino feito no engenho.
Os caroços de mamona eram triturados no monjolo e espremidos na prensa para retirar o óleo que iria iluminar a casa grande. Para iluminar a senzala, o caroço da mamona era batido junto com a fibra de algodão até se transformar numa massa homogênea que era moldado no formato de velas e colocadas nas candeias suspensas do travejamento do teto.
Um trovão ribombou por cima da casa grande fazendo tilintar os vidros das janelas e o conteúdo das duas cristaleiras. Suzana correu e se abraçou com o pai. O Coronel pegou-a no colo e foi para a janela mostrar à filha o espetáculo da chuva desabando sobre o lajeado em frente à casa grande.
Vicência entrou na sala com um lençol para cobrir o espelho grande a fim de evitar que os raios fossem atraídos por ele.
- Leve as crianças para a cama. Sanana melhorou?
- Melhorô Coroné. Graçadeu tá drumino...
O Coronel pegou um charuto no armário e foi para a varanda olhar o tempo. Ia ser chuva forte a noite toda. Ignácio subiu alguns degraus da escadaria e perguntou
- Coroné e o sô Bento. Posso sortá o homi?
- Não. Ele vai ficar onde eu mandei até amanhã.
Ignácio desceu de costas os degraus que havia subido e foi para a cocheira de onde podia ver o sentenciado sem ter que levar a chuva que não deu trégua durante toda a noite. Se continuasse assim, fatalmente, haveria cheia.
Pela manhã o Coronel mandou soltar o gado, eles sabiam melhor que ninguém as partes altas do engenho. As vacas leiteiras foram trazidas para o curral que ficava ligado com a cozinha da casa grande. O capataz foi tirado do mourão e levado para o casebre onde vivia, aonde ficou entregue à própria sorte.
Havia muito serviço a ser feito para proteger o açúcar já pronto e o que estava em processo de purga. Tudo teria que ser trazido para a casa grande que ficava no alto do morro onde a água nunca, nem as maiores cheias, haviam chegado.
- Coroné, o capataz tá se acabano de febre.
- Bote arnica nas feridas, dê um caldo quente prá ele beber, mas deixe ele lá.
Choveu forte durante todo dia. Noite alta se ouviu o som lúgubre do búzio tocado nessas ocasiões, para anunciar que a cheia estava se aproximando. Os escravos pegaram seus pertences e vieram para o porão da casa grande.
O som da cabeça da cheia arrasando tudo era assustador. Nada mais havia para ser feito. Apenas esperar que a chuva parasse e que a água seguisse seu curso em direção ao distante mar.
O Coronel sentou na cadeira de balanço da sala de visitas e cercado pelos filhos Antonio Fabrício de sete anos; Maria Suzana de cinco; Maria Laura de três e João Antonio de um ano, no braço, contou que a chuva era por causa da festa que ia ter no céu e os anjinhos, lavando tudo, deixavam a água cair. Que os trovões eram os móveis sendo arrastados e os raios eram as velas sendo acesas para iluminar tudo. Sanana entrou na sala e perguntou
- O Coronel não vai mandar trazer o capataz para cá?
- Não Sanana. Aqui ele não entra.
- Mas senhor, e a cheia?
- Não é problema meu.
- Mas...
- Chega Sanana! Seu Bento é assunto encerrado.
O Coronel Venâncio chegou à porta com a capa encharcada. Logo atrás dois escravos carregando o enorme baú com as roupas. As crianças correram para abraçar e tomar abênção ao avô.
- Bença meu pai... Vicência veja outra roupa para meu pai trocar essa molhada...
----------------
Dois dias depois, quando o rio havia voltado para sua calha, o Coronel pode avaliar o estrago. Canavial, roçado, pomar tudo coberto por grossa camada de lama.
Da senzala só o travejamento de madeira que segura a taipa. Em pontos esparsos do telhado algumas telhas que não haviam sido arrastadas pelas águas mantinham equilíbrio precário sobre o travejamento oscilante.
E por toda parte, nem sinal de Bento, o capataz...

(nas falas dos personagens escravos, procurei reproduzir a forma de falar dos quilombolas, meus conhecidos.)

CAVERNA – Classificação: aventura
“Nas grutas, só se tiram fotos, só se levam lembranças, só se deixam rastros” – Princípio espeleólogo.


Eu não tenho a mínima idéia das circunstâncias que fizeram e com que aquele folheto viesse parar em minhas mãos.

A impressão não tinha grande impacto visual, mas o papel era de boa qualidade e pessoas sorridentes como em propaganda de margarina ou de creme dental, faziam o convite para a excursão às famosas grutas da Chapada Diamantina, no centro do centro do Brasil.

Para pessoas com alma cigana, como eu, aquele era um convite irresistível e, três dias depois estava eu, sendo sacolejado, a caminho da Chapada, dentro de um ônibus velho que, por seu aspecto e estado de conservação, devia ter feito parte da comitiva real, quando Dom João, ainda príncipe regente andara pela Bahia nos idos de 1808 e, acredito, naquela época ele já devia ter bastante tempo de uso assim como o seu motorista, seu Fulgêncio que também era cobrador (recebeu o pagamento das nossas passagens no momento do embarque, com a recomendação que deveria ser em espécie porque ele não dispunha de dinheiro miúdo para trôco); mecânico (porque vez por outra o ônibus fumaçava, tossia, apagavam-se as luzes e o motor morria); borracheiro (porque os pneus não chegavam a rodar 50km, estouravam e ele, pacientemente fazia o remendo, enchia com uma bomba manual, montava tudo outra vez e seguíamos em frente) e cozinheiro (porque nosso ônibus tinha serviço de copa e cozinha, limitada logicamente, a água tão quente como se tivesse escapado do radiador, bolacha mais dura que os seixos da beira da estrada, feijão de tropeiro, carne seca frita e aquele arroz no melhor estilo “santa casa de misericórdia”), mas aventura que se preza tem que demonstrar as dificuldades logo de início para ver se o cabra é macho capaz de enfrentar...

E seguíamos nós, lépidos e fagueiros em direção à bela cidade de Lençóis, cortada pelo riachinho que leva seu nome (ou seria a cidade que herdara o nome do rio bem mais velho que ela?) e que na época das chuvas se transforma num dragão capaz de tragar tudo o que encontra em sua frente.

Mais quebrado do que arroz de terceira preenchi a ficha do Hotel Pousada onde me esperava uma cama macia, recheada de festivos percevejos que me deram as boas vindas com um banquete onde o prato principal era o meu sangue.

Tentei inutilmente afastá-los usando quase todo o tubo de repelente de insetos.

Mas percevejo não é inseto e todos, absolutamente todos, fizeram questão de demonstrar a superioridade da espécie em não levar em consideração o princípio ativo do repelente.

Enfim consegui dormir, afinal foram três dias de viagem entre Salvador e Lençóis em companhia de seu Fulgêncio e sua incrível máquina exterminadora de aventureiros metidos à besta.

Lapa Doce é o nome da gruta cuja entrada mais parece a porta de um hangar onde entrariam facilmente dois aviões Boeing, daqueles grandões, ao mesmo tempo.

É um mundo incrivelmente diferente de tudo aquilo que nossos olhos estão acostumados a ver.

As avencas levemente embaladas pela brisa matutina se mostram exuberantes, como cortinas no umbral daquele mundo subterrâneo que aprendemos a temer desde a primeira infância.

Escuro, misterioso, onde o som constante do gotejamento nos lembra milhares de relógios marcando, em contagem regressivamente cadenciada, os segundos que nos restam de vida.

Tudo é lindamente impressionante naquele local de magnas proporções, onde a cada passo, nos sentimos menor, mais vulneráveis, mais indefesos.

O chão brilha quando a luz da lanterna incide sobre os cristais de calcita. É como se estivéssemos vendo a via Láctea de cima para baixo, com miríades de estrelas cintilantes.

Os estalactites e estalagmites se aproximando lentamente, a cada gota da água, rica em carbonato de cálcio, formam estranhas figuras que nosso cérebro, acostumado a examinar as coisas por comparação, vai identificando as formas de cálice, elefante, pizza, torres de catedrais, asas de morcegos, peitos de mulher, tronos, cajados, velhos curvados pelo peso dos anos...

Numa das colunas havia um bando de grilos das cavernas.

São animais perfeitamente adaptados ao ambiente sem luz tanto que perderam a cor e substituíram a visão por aumento considerável no tamanho das antenas, que funcionam como as bengalas dos humanos cegos e através delas pode localizar o excremento dos milhares de morcegos, onde microrganismos, seu alimento preferido, executam em perfeita harmonia o processo de reciclagem da matéria.

Embevecido nessa contemplação e acompanhando o movimento dos grilos perturbados pela luz de minha lanterna, enveredei por galerias fora do circuito onde o nosso guia tinha deixado parte do grupo enquanto providenciava socorro para uma mocinha, claustrofóbica, que dera um piripaque.

De repente estava perdido, sem saber como voltar.

O fato é que eu ouvia as vozes, mas não sabia como voltar para a trilha, naquele labirinto incrivelmente igual.

- O senhor se perdeu do grupo, não foi?

Olhei para todos os lados na intenção de identificar de onde tinha partido aquela voz, mas não consegui ver nada, além das belas formações cristalinas de cores variadas.

- Estou ouvindo coisas (pensei em voz alta) aqui não tem ninguém.

- Tem sim, Ninguém é o meu nome.

E surgiu diante de mim um homem bem mais alto do que eu com os cabelos e barba quase pelos joelhos, segurando um cajado de madeira escura. Sua idade era impossível de determinar.

A pele que se via, do rosto e membros superiores e inferiores, era branca como se fosse uma estátua de mármore.

- O senhor mora aqui? Perguntei curioso.

- Desde que era um rapaz. Não sei quanto tempo faz que estou aqui dentro. Me refugiei para não ser preso por conta do crime que cometi, mas me condenei à prisão perpétua porque não pertenço mais ao mundo lá de fora.

- E como é que o senhor faz para viver? Como é que come?

- Como grilo e às vezes morcego novinho quando cai dos braços da mãe.

- E o senhor consegue ver com seus olhos brancos assim?

- Não. Fiquei cego há muito tempo. A água me cegou, mas aprendi a viver no escuro e a interpretar os sons que escuto como o do seu coração, que está batendo assim com medo de mim. Mas não tenha medo, eu não lhe farei mal. Eu sou inofensivo como tudo que tem aqui na gruta. Só lhe peço um favor...

Aquele homem, se é que se pode chamar assim, tinha toda razão, eu ainda permanecia ali porque não sabia como voltar para a trilha e principalmente, porque desde a sua chegada, eu deixara de sentir minhas pernas, tal o medo que tomara conta de mim.

- Eu sinto que estou morrendo e quero pedir um favor ao senhor.

- Pode falar. Eu farei o que o senhor pedir.

- Eu quero que o senhor entregue essas alianças a uma moça que mora em Marimbus. O nome dela é Branca. Diga que foi o noivo dela quem mandou.

- Eu entregarei pode confiar.

E o homem de pedra tirou dos dedos, com muito sacrifício, um par de alianças de ouro que, por causa do ambiente ácido, estava brilhando como se tivesse acabado de ser polida por ourives competente.

- Para voltar para a trilha, passe por baixo da perna daquele elefante ali na sua frente e ante para a direita.

Dizendo isso o homem colocou a mão no peito e desabou no chão de pedra batendo com a cabeça numa elevação com um ricto de dor no rosto. Abaixei-me junto a ele e num fio de voz ele disse:

- Não me tire daqui.

Enquanto voltava para a trilha, lembrei do princípio do espeleólogo. Eu não tinha o direito de tirá-lo dali porque ele era parte da gruta.

Fui para o hotel emocionalmente abalado por ter sido testemunha da morte de um homem que havia se refugiado na gruta e que não queria sair de lá mesmo depois de morto, ouvi um sermão do nosso guia, um veadinho que mais parecia uma libélula saltitante com crise histérica, por conta da minha transgressão às normas de segurança.

Nessa noite, depois de uma deliciosa sopa de batata da serra, fui registrar tudo em meu diário e depois dormir para estar inteiro no dia seguinte.

O faxineiro tinha feito o serviço que eu encomendara com querosene e óleo diesel em todo quarto, chão, móveis, porta e janela e comprado o colchão novo que eu dera o dinheiro e que seria dele quando eu fosse embora.

Os percevejos não apareceram para o jantar e, vitorioso, dormi até depois das 10h00 da manhã do dia seguinte.


Contratei um jeep da segunda guerra e fui para Marimbus cumprir o prometido.

A estradinha é péssima, mas chegamos ao antigo quilombo e eu fui procurar a mocinha chamada Branca.

A única pessoa que tinha esse nome era uma senhora que pelos meus cálculos estava já na casa dos noventa e tantos anos. A pele negra contrastava com o vestido e os cabelos brancos, ela estava sentada numa esteira de palha no chão batido da varandinha da casa toda feita de palha de piaçava. Sentei num caixote de madeira perto dela.

- Quem é o senhor e o que quer comigo?

- Eu trouxe um recado para a senhora.

E tirando as alianças do bolso algibeira, entreguei repetindo as palavras do homem da caverna.

- Essas alianças foi seu noivo quem mandou.

A dona Branca olhou as jóias brilhando na palma da minha mão e num gesto vacilante, pegou, observou longamente, como se naquele momento toda uma história antiga houvesse se liberado do mais recôndito espaço do seu cérebro.
A sequência de alterações faciais devia ter sido filmada porque nem Leonardo da Vinci seria capaz de reproduzi-las e eu me amaldiçoei mil vezes por não ter ligado a câmera antes de fazer a entrega.
Da curiosidade quase infantil, seu rosto demonstrou surpresa, alegria, tristeza, horror e me entregando as alianças disse num fio de voz.

- Eu não posso ficar com isso moço. Nessas alianças tem o sangue do meu pai que foi assassinado por aquele homem. Ele não queria o nosso casamento.

- Mas ele já está morto. Morreu ontem pouco depois de me entregar as alianças.

- Eu ia fugir com ele, mesmo contra a vontade de minha família, mas aí eles se encontraram, brigaram e eu fiquei, até hoje, sem meu pai e sem meu amor.

- Quanto tempo faz que isso aconteceu?

- Acho que faz mais de oitenta anos...

No dia seguinte, voltei à Lapa Doce e sem que ninguém visse, depositei as alianças numa piscina natural tão funda, que fez desaparecer o brilho do ouro...

OBS: Esse texto foi produzido a partir do HaiKai XVI da consóror Marina Alves que gentilmente permitiu a publicação, a quem dedico a como forma de agradecimento.

                         "Caverna escura/ entre pedras gotejantes/ ramo de avenca"

AMIGO OCULTO – classificação: surreal
Eu ainda era um bebê quando minha família mudou para o bairro do Monteiro.
Nossa casa ficava na avenida, bem próxima ao açude de Apipucos, quase em frente à igreja do engenho que se transformara em bairro.
O quintal atrás da casa terminava na margem do rio Capibaribe onde haviam banheiros construídos desde o tempo dos escravos.
O piso era feito com tijolos bem grandes de barro cozido que tinham cintilações verdes por conta da vitrificação feita com sal.
As paredes eram de taipa de sopapo porque, periodicamente, o rio enchia e derrubava tudo. Só o piso resistia à fúria das águas.
Havia muitas árvores frutíferas nos duzentos e tantos metros de quintal que começava nos batentes da cozinha e se estendia, com inclinação suave, até os banheiros. Era o meu sítio, onde passei os melhores anos de minha vida.

Ainda no berço eu ficava por muito tempo, depois de acordado, brincando com Agnus Dei, o meu amiguinho preto que aparecia quando eu estava só e desaparecia quando alguém se aproximava de mim. Agnus gostava de tocar o chocalho e me ensinava canções numa língua que ninguém entendia.
Eram palavras que contavam histórias da boa vida, numa aldeia que ficara muito distante e aonde as pessoas sentavam à sombra dos baobás para beber da água doce do rio, cheio de hipopótamos que bramiam em noites de lua cheia.
Antes de completar um ano, meu amigo Agnus me ensinou a andar. Ele segurava as minhas mãos e andava de costas me guiando para o terraço fresquinho ao lado da casa.
Cresci brincando com Agnus, mas como ninguém conseguia vê-lo deixei de dizer que ele estava brincando comigo.
Quando alguém dizia:
– Esse menino passa o dia todo brincando só, se não chamar ele é capaz de passar o dia todo com fome – eu nem ligava.
Agnus trazia uma cesta pequena cheia de bolinho de goma bem branquinho que a mãe dele fazia e nós comíamos tudo.
Nos domingos quando eu ia assistir a missa com minha família, Agnus ficava do lado de fora da igreja.
Quando eu chamava para ele ficar no banco, ele chegava perto e dizia: - Sinhá num dêxa nego entrá... E saía correndo.

Com sete anos fui matriculado na escola de dona Filomena, Agnus ia comigo e ficava sentado no banco do jardim esperando que a aula acabasse. Foi nessa época, conversando com Suzana, minha colega de classe, que também via Agnus e ficava toda arrepiada, que eu entendi que ele era uma assombração.

Às vezes eu pedia a ele para dar susto nas pessoas e a gente ria muito se lembrando das caras assustadas que elas faziam. Todas as vezes que estávamos brincando na casa da árvore que tio Tonho construiu para mim, no pé de fruta pão, lembrávamos dos sustos e riamos muito.

Eu estudava falando bem alto que era para Agnus decorar e me ajudar nas sabatinas, mas ele era burrinho não aprendia nunca e eu fiquei muitas vezes de castigo por conta das respostas erradas que ele me dava, principalmente na tabuada que ele mais se confundia e eu levava bolos de palmatória.
Mas eu não tinha raiva dele. Ele era meu amigo, meu companheiro, meu amigo oculto que estava sempre disposto a me ajudar em todas outras coisas.

No dia em que eu fiquei olhando a prima Matilde tomar banho, ele me avisou que tia Emília estava chegando nas pontas dos pés para me pegar. Se eu tivesse sido descoberto, teria levado uma surra daquelas!

Com onze anos me matricularam no seminário de Olinda. Fiz de tudo para Agnus ir também, mas ele dizia que tinha medo de padre e que também sinhá não deixava entrar na igreja.
Uma vez por mês eu vinha passar o final de semana no Monteiro. Enquanto eu estava vestido com a batina negra de faixa azul, Agnus não se aproximava.
Ficava meio escondido atrás da porta me olhando com aquele olhar desconfiado de criança que fez algo errado e espera o castigo que, certamente, virá.

Com muita conversa, aos poucos fui desfazendo aquele medo e repassando ao meu amigo os conceitos da teologia e de filosofia que estudava no seminário e, coisa engraçada, parecia que a cada mês meu amiguinho ia crescendo, se tornando adolescente, depois jovem, depois como homem perdeu a cor escura, ficou diáfano.
Todos os dias nas orações matinas, terças, sextas, noa e vésperas eu pedia com todo fervor que deus desse entendimento ao meu amigo para que ele encontrasse o caminho da paz e da iluminação.
Numa noite, quando todos já haviam se recolhido, eu vi Agnus junto à minha cama. Ele disse:
- Vem comigo, vamos lá fora.
- Não posso sair.
- Então, abre a janela.
- Eu vou abrir a janela do corredor. A do dormitório somente o padre prefeito pode abrir.
Tentando fazer o mínimo ruído possível, abri uma das janelas do imenso corredor. Havia uma luz etérea no pátio e Agnus me disse:
- Graças às suas preces, esses mestres vieram me ensinar os caminhos espirituais e eu vou agora com eles. Somente iremos nos encontrar quando você tiver concluído essa encarnação.

Com os olhos cheios de lágrimas vi meu amigo perder a forma humana e juntamente com outros vultos se dissipar entre a folhagem do jardim. Nesse momento, eu senti uma vibração muito forte inundar meu corpo e aquela sensação de paz e harmonia impossível de se transformar em palavras.

- Não chore meu filho, seu amigo agora está no caminho da luz. Vá dormir e não comente isso com ninguém.

Era o padre prefeito que, tirando a mão do meu ombro, fechou a janela e se dirigiu para sua cela.
Olhando as costas do padre que se afastava, julguei ver um feixe de luz sobre a sua cabeça.

Formei-me padre e fui trabalhar na Zona da Mata de Pernambuco numa comunidade pobre e analfabeta. Trabalhei com afinco para que meus paroquianos saíssem daquela vida de sacrifício inútil.
Por causa disso, era chamado de comunista.

Durante a ditadura fui perseguido, preso, torturado e expulso do país. No meu exílio forçado, pedi aos meus superiores para servir na África, onde o povo falava algumas das palavras das canções da minha infância.
Com a anistia, voltei para minha terra e trabalhei até mês passado quando foi diagnosticado câncer na cabeça do pâncreas e me deram no máximo três meses de vida.
Hoje quando acordei na UTI vi Agnus Dei junto à cama. Ele sorriu para mim e perguntou:
- Vamos?
- Espere um pouco. Quero terminar a nossa história que estou ditando para o gravador.
- Eu prefiro que os leitores façam o final que eles acharem melhor.
- É. Você tem razão...
E o bip intermitente do monitor cardíaco foi substituído pelo som contínuo...

CRÔNICA

FILHOS DO LIXO
A TV Globo mostrou hoje no jornal Bom dia Brasil, a primeira de uma série de reportagens sobre o submundo do lixo.
No interior de Pernambuco, numa cidade tão grande a ponto de produzir quinze toneladas de lixo por dia, três crianças de dois a quatro anos, filhos de uma jovem que por ser catadora de lixo e por não ter creche no município, é obrigada a leva-los para o seu “ambiente de trabalho” numa carroça puxada por jumento, onde são transportados os materiais para reciclagem.
Essa mulher que mora num barraco miserável, onde falta tudo, levanta antes de clarear o dia, dá banho e veste as crianças, atrela o jumento à carroça e vão para o lixão da cidade onde as crianças podem comer restos de alimentos que foram jogados fora, contaminados pelo contato com material em decomposição, como aves mortas descartadas de criatórios, cujas carcaças apodrecidas são disputadas pelos demais catadores que as levam para terem o que comer em casa. No mesmo espaço, urubus disputam algo que os humanos não puderam aproveitar pelo adiantado estado de putrefação. Cada caminhão que chega, provoca uma corrida dos catadores para conseguir algo reciclável de valor comercial ou mesmo um reforço para alimentação do dia.
Essas cenas, dignas de compor as obras de Victor Hugo ou Dante Alighieri, são o retrato vil do descaso com a vida humana, da hipocrisia dos homens que se dizem cristãos, do descalabro com que são administradas as verbas públicas.
Onde está o Poder Judiciário?
Onde está o respeito aos direitos humanos?
Onde está o Estatuto da Criança e do Adolescente?
(que deveria atuar mais na prevenção que na punição)
Onde estão as verbas públicas para a construção e manutenção das creches e das escolas?
Outras duas moças foram mostradas. Os seus sonhos frustrados eram de arranjarem serviço no mercado formal de trabalho, uma delas, em lágrimas, verbalizou o desejo que tinha de ser Secretária, mas não pode estudar (faltou escola) e hoje, estão presas na vida degradante que nossa sociedade omissa, lhes destinou.
O que vai ser desse pessoal, sem comer, sem saúde, sem instrução?
Que outro futuro os espera além da miséria?
Até que o manto da droga os acolha, continuarão comendo lixo “morrendo um pouco a cada dia”*
Tenho vergonha de minha geração que fez com que chegássemos a esse ponto e, por minha omissão, tenho vergonha de mim.
*Verso de João Cabral de Melo Neto em Morte e Vida Severina.

HAIKAI – classificação: Senryus

HAIKAI 4

Mão estendida, ao pé da ponte,

        Moedas tilintando na tigela.

                  Cão vadio, adormecido.
HAIKAI 7

Livros empilhados
 
       Conhecimento condensado

              Povo analfabeto

MENSAGENS –classificação: amizade

OUTRA VEZ É NATAL
Uns dizem que o ano passou muito rápido, que não deu tempo para nada, que parece que foi ontem a festa do último natal.

Outros consideram que os dias se arrastaram, e que parecia, que o ano não queria acabar.

Tudo ilusão...

Os dias foram tal qual os do ano anterior e o anterior do anterior por todo o sempre, afinal, todos eles tiveram, e terão, as mesmas vinte e quatro horas.

O que provoca essa sensação de urgência ou de lerdeza do tempo é, exclusivamente, o ponto de vista.

O ano que passa célere, como o clarão do raio, para o estudante que vai prestar vestibular e tem toda a matéria para passar em revista é o mesmo que se arrasta, como tartaruga sonolenta, para os que estão hospitalizados ou encarcerados.

Mas independente do ponto de vista, o fato é que estamos, outra vez, no limiar de um novo ano e é nessa ocasião que renovamos, a todos, os nossos votos de felicidades, saúde, dinheiro, alegrias, grandes (e pequenas) realizações e acima de tudo paz de espírito.

E é exatamente tudo isso que eu desejo a todos os meus companheiros dessa viagem maravilhosa à qual chamamos vida.

PENSAMENTO

QUERIA
Queria que você fosse meu eterno bem,

Queria ver crescer a fraternidade,

Queria saber que não mais existe a miséria,

Queria ver florescer a amizade.

Queria viver um milhão de anos,

Queria que o organismo não envelhecesse,

Queria estar mais perto dos amigos,

Queria que o egoísmo desaparecesse.

Queria ler todos os livros do mundo,

Queria saber falar todas as línguas vivas,

Queria conhecer todas as línguas mortas.

Queria ver todos os museus,

Queria ver todos os parques do mundo,

Queria conhecer todas as praias,

Queria mergulhar no oceano profundo.

Queria correr pelos campos como louco,

Queria me perder nas florestas,

Queria ver de perto todos os animais,

Queria sentir o aroma de todas as flores,

Queria ser surpreendido pela chuva torrencial,

Queria andar a pé por todas as estradas.

Queria experimentar de toda culinária do mundo,

Queria um gole de todas as bebidas,

Queria sorrir de orelha a orelha,

Queria gargalhar com todos os dentes,

Queria chorar lágrimas de felicidade

Queria que na estrada da vida...

Eu estivesse no portão da entrada,

E não na porta de saída...

POESIA – classificação: desilusão


ESPERA
Esperei por ti inutilmente,
Em cada rosto eu via num repente,
Teu lindo olhar, teu riso, teu semblante,
Mas não vieste e sem dizer o porquê,
Destruíste neste gesto todo o meu viver.

Íamos fugir para bem longe,
Viver a vida que havíamos sonhado,
Os planos todos, a nós mesmos dedicados,
Pontilhados de ventura e felicidade.
Vivendo a aventura da alegria,
Onde ninguém sequer nos conhecia,
Vida cigana, completa, sem saudade.

Mas não vieste e sem dizer o porquê,
Destruíste neste gesto todo o meu viver.

Ainda hoje choro a desventura,
De ter sonhado e não realizado,
A vida a dois que tu abandonaste.
Aquela noite permanece ainda,
Fez-se eterna, tornou-se infinda.

Pois não vieste e sem dizer o porquê,
Destruíste neste gesto todo o meu viver.

PROSA POETICA

AREIA, TESTEMUNHA.

Nossos castelos de areia enfeitados com sargaço
Sempre foram os mais bonitos
Na nossa infância, desinibidos
Passávamos as horas construindo, sem cansaço.
Você, a princesa que a bruxa aprisionou
Eu, o herói cavalgando as ondas
Derrubando muralhas inexpugnáveis, que sempre lhe salvou.

Adolescente a areia lhe incomodava,
Trazida pelo vendo no bronzeador se pregava,
O banho rápido e a reposição do creme
Que em minha mão, a sua pele macia massageava
Com o prazer de sentir as curvas generosas
Deliciosamente quentes e olorosas.

Eu te amo, escrito em relevo com areia e sargaço
Em ondas, o mar levou
Mas nosso compromisso selado num abraço
Nada, nem o tempo, apagou.

Nossas sombras projetadas na areia
Sua barriga grávida revelava
Tantas vezes, ela foi mostrada
Seguidamente, éramos dois, éramos três,
Éramos quatro, éramos cinco, éramos seis.
Nossas pegadas seguidas de pegadas pequeninas
Outros castelos, outras princesas
Nossas crianças, nossas filhas, nossas meninas
Que cresceram e foram fazer outros castelos
Muito além do horizonte, bem longe de nós
Deixando apenas a saudade atroz.

Incansável, o mar apagou todos os dias
As pegadas que deixávamos nas areias
Mesmo vacilantes, nossos velhos pés
Não deixaram de marcar nosso caminho.
A morte repentina parou seus passos
E estando longe do alcance dos meus braços
A lua hoje imprime na terra
Uma sombra solitária, que encerra
A imensa dor de caminhar sozinho.



Autor: Alberto Vasconcelos - Santo André - SP

Página do autor:


http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=41760

Relógio de acesso inicial: 146.735 a 149.333, total: 2.598