domingo, 27 de novembro de 2016

Bodas

Autor: José Bueno de Lima

O tempo é de casamento. Não foi só na Inglaterra que aconteceu. Aqui também tivemos o nosso. Claro que não dá para comparar. Não temos a Abadia de Westminster, o Palácio de Buckingham, as carruagens puxadas pelos pomposos cavalos, nem a guarda real, com seus uniformes magníficos. E, muito menos, príncipe.
Durvalina e Genival se conheceram numa roda de samba. Numa daquelas em que os bambas do partido-alto eram encontrados. Entre eles Aniceto do Império, Candeia, Xangô da Mangueira, Geraldo Babão, Clementina de Jesus, e tantos outros.
Ela, diarista de casa de família, morando no Vidigal, era uma cabrocha daquelas que, se Sargenteli ainda vivesse, não teria dúvida em contratá-la para sua “troupe”. Um corpo escultural. Dançava samba como ninguém! Mas, de uma seriedade a toda prova! Com ela não havia aquela história de, olhou, deu uma piscada, já estava nos braços do galanteador! Não! Era preciso ter muitas qualidades para conquistá-la. Vivia sozinha. Apesar de ficar na favela, sua casa, de alvenaria, era um primor de ajeitada. Tudo no seu lugar, a cozinha sempre limpa, equipada com fogão moderno, geladeira “frost free”. A sala, pequena, com sofá de dois lugares, e uma TV de 20 polegadas, tela fina. Assim arrumadinho era seu quarto, com cama de casal, e um guarda-roupa bem organizado. Banheiro impecável. Dava inveja à vizinhança. No trabalho, então, poder-se-ia encontrar alguém igual, o que já era difícil. Melhor jamais. Feliz a dona-de-casa que tivesse Durvalina como sua auxiliar de limpeza. Para completar, em algumas das casas em que trabalhava, era contratada para cozinhar. Excelente, também, no fogão!
Diante de todos esses predicados, sua fama era de uma mulher ideal, e o homem que tivesse a felicidade de conquistá-la como companheira, poderia levantar as mãos para os céus, em agradecimento a Deus.
Genival, por sua vez, não foi à toa que conseguiu Durvalina. Trabalhador, solteiro, morava ele em Ramos, membro da Sociedade Amigos de Ramos, onde exercia o cargo de diretor. Era funcionário da Secretaria de Saúde do Estado, todavia, na área burocrática. Sério, um servidor cumpridor fiel de suas obrigações. Jamais deixava seus deveres para amanhã. Arquivos sempre atualizados. Também era um afro- descendente.
Sua paixão era o samba, e, nos fins de semana, não deixava por menos, ia para o reduto dos sambistas famosos.
Numa dessas ocasiões, conheceu Durvalina. Quando vislumbrou aquela mulata, foi como um raio fulminante. Um clarão turvou sua visão! Fechou os olhos, como se estivesse num sonho, jamais acreditando no que via. Aquele rosto bonito, corpo maravilhoso, lábios carnudos, tudo conjugado com a simpatia da moça, logo se sentiu conquistado.
Durvalina, como era de se esperar, apesar de ter se simpatizado com Genival, não deu qualquer demonstração de interesse. Apenas sorriu. Ela percebera que havia impressionado aquele desconhecido. Trocaram palavras, simples amenidades, não passando disso. Entretanto, mais tarde, já bem descontraída, houve uma abertura, da qual ele se aproveitou, convidando-a para novos encontros.
Assim, pouco a pouco foram se conhecendo. Cada vez mais Genival se sentia atraído por Durvalina. Sua doçura, meiguice, sinceridade, todas essas qualidades, e as provas de excelente dona-de-casa que demonstrava ser, deixavam-no tranquilo, com a certeza de que teria nela, uma grande companheira. Sem falar em seus atrativos como mulher bonita, atraente, que impressionava qualquer cidadão que a visse.
Com Durvalina acontecia a mesma coisa. Via em Genival um homem honesto, trabalhador, sério, fiel cumpridor de seus deveres, demonstrando que haveria de ser um bom marido, e um ótimo pai. E, não deixava de ser um bonito mulato.
Além disso, tinham em comum, algo que adoravam fazer: dançar. O samba estava no sangue deles.
Um dia, dançando na Estudantina, conhecida gafieira carioca, Genival diz ao ouvido de Durvalina:
- Você quer casar comigo? Ela arregalou os olhos, surpresa pelo momento, conquanto já o esperasse.
- Claro meu amor, é a coisa que mais queria ouvir de você! E deu-lhe um sonoro beijo.
Daí em diante, começaram a traçar os preparativos. Durvalina, muito consciente, com os pés no chão, elaborou uma lista bem minuciosa de tudo o que mais precisavam, a fim de concretizar o desejo. Genival, então, confessou a ela já haver todo o necessário. Durante o tempo de namoro, com muita cautela e sem alarde, fora adquirindo móveis, aparelhos domésticos. E a casa onde morava, sendo de sua propriedade, toda reformada, iria ser a residência do casal.  Estava totalmente mobiliada.
Marcaram a data: 29 de abril de 2011.
Por coincidência, o mesmo dia do casamento do príncipe William e a plebéia Kate, na Inglaterra. Naquela sexta-feira, Durvalina acordou mais cedo, e assistiu, inteirinho, o casamento real. Ficou mais ansiosa! Tinha plena noção das diferenças entre as duas cerimônias.
Mas, sentiu-se feliz!
Cerimônia simples, na Igreja de Nossa Senhora da Penha, e recepção na quadra da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira. Com direito à exibição da mesma, durante a festa.
Mais ou menos às 22:00h, quando a comemoração estava no auge, Genival lembrou-se de algo muito importante. Imediatamente, largou Durvalina no meio da pista de dança, e do mesmo jeito que estava vestido, saiu em desabalada carreira, rumo à sede da Sociedade Amigos de Ramos.
Lá estavam todos os seus documentos necessários.
Por esquecimento, no corre-corre dos preparativos do casamento, deixara de efetuar a declaração e enviar seu Imposto de Renda, cujo prazo de entrega venceria dali a menos de duas horas!
Foi cumprir seu dever!

Autor: José Bueno de Lima - Santo André/SP

domingo, 20 de novembro de 2016

A turma da bomba dágua...

Autor: Magnu Max Bomfim

Ultimo ano de faculdade, ultimo semestre, cinco anos longe da família, uma vontade danada de voltar pra casa, foi quando um dos nossos professores resolveu transformar em realidade aquele sonho que sempre acalentava e que sempre adiava, ele comprou uma imensa motocicleta e saiu a rodar pela cidade, na primeira curva a máquina derrapou e no descontrole caiu sobre a sua perna esquerda esmagando-a, e disto resultou um acréscimo ao seu corpo de mais de uma dúzia de parafusos, algumas placas de platina e uns seis meses de repouso, fisioterapia, muletas, etc.
Às presas a universidade contratou um substituto, ou melhor, uma substituta, uma moça alourada, recém-formada, ríspida, durona, não era alta, dona de uma beleza contagiante, dona também de uma firmeza monolítica na condução dos seus propósitos.
Naquela época não éramos bem vistos por fazermos parte de um conjunto musical que treinava em um barracão ao lado de uma imensa caixa d’água, e de imensas bombas de recalque, nosso conjunto musical tinha até um pomposo nome em inglês, mas os invejosos nos apelidaram de A Turma da Bomba D’água, e por mais que tentássemos nos livrar daquele maldito apelido mais aquilo em nós grudava, impregnava, por fim assumimos, éramos a Turma da Bomba D’água, com todos os seus defeitos e toda a sua má fama, moços da boemia que tocavam em troca de sanduíches, diziam...
A nova professora ao que parece fora alertada da nossa fama, e que apesar de vivermos na noite tirávamos boas notas, na certa éramos craques na arte de colar, pois estrategicamente sentávamos lá no fundo da classe, nas últimas carteiras:
— Nas minhas aulas eu quero que a Turma da Bomba D’água sente aqui nas primeiras carteiras, por favor rapazes!
Nós que gostávamos de Fernando Pessoa tínhamos como lema: Contornar é preciso, confrontar não é preciso, obedecemos, para o delírio da turma.
Tem certos momentos em que sentimos que estamos sendo observados, que alguém está olhando pra gente e não sabemos quem, assim eu me sentia naquele momento, levantei olhos e deparei com os belos olhos da professora ternamente em mim fixados, o tempo parou e naquele profundo silêncio que se seguiu e eu tenho a absoluta certeza que ouvi daquele olhar, palavras de amor, seus olhos levemente sorriram e ela olhou para outros cantos da sala de aula, despistando.
Aquela nova professora queria mostrar serviços:
— Pesquisem no livro tal da página tal a tal e apresentem uma sinopse na próxima aula!
Já estava começando a odiar aquela moça, mas também já estava começando a amá-la, das vezes na biblioteca perdido entre pesquisas e mais pesquisas ela aparecia toda sorridente:
— Estou gostando de ver vocês aqui...
Sentava ao meu lado, dava algumas dicas de como fazer um trabalho apresentável, mas quando eu olhava nos seus olhos um calafrio percorria todo o meu ser, seus olhos transmitia mensagens que o meu coração seguramente traduzia que ela de mim estava gostando, por fim arrisquei:
— Será que tenho uma mínima chance de algum dia ser seu namorado?
— Se você abandonar aquele conjunto musical, ser mais responsável, ou melhor, ter um comportamento de bom moço, com certeza existe uma mínima chance de sermos mais que amigos!
Comecei a faltar aos ensaios do conjunto, por fim cansaram e me substituíram por um estudante gaúcho, um rapaz espevitado, dono de uma energia contagiante, na certa a minha ausência não foi sentida na Turma da Bomba D’água...
Morávamos perto da universidade, à noite gostava de ficar sentado em volta daquelas mesinhas que ficam nas calçadas em frente aos barzinhos, foi quando vi um carro se aproximar e dele desceram três moças, minha professora e duas amigas, me cumprimentaram, sentaram, conversaram, desconversaram, e as duas amigas com as mais esfarrapadas desculpas teriam que visitar uma pessoa conhecida delas que estava adoentada, partiram, neste instante um maluco guiando um imenso carro preto, brecou seu veículo com tamanha violência que derrapando chegou a roçar os pneus na calçada, o moço saindo do carro apressadamente entrou no bar deixando o rádio ligado com o som nas alturas, Eric Clapton cantava... “While my guitar gently weeps”... Ao ouvir aquela música meu coração não resistiu:
— Eu não sei o que o amanha reserva pra nós, mas de uma coisa eu tenho a  absoluta certeza, seja lá onde eu estiver, toda vez que ouvir esta música vou me lembrar de você...
Segurando as suas mãos, lentamente nossos lábios foram se aproximando, e um beijo daqueles de perder o fôlego foi incendiando a minha alma por inteiro descompassando meu coração.
Ela sorrindo:
— Você nem me pediu em namoro, mas agora isto nem é mais preciso, pois já estamos enamorados. Abraçamos e beijamos tantas vezes que...
No outro dia na universidade o assunto do dia era o nosso namoro, os beijos e abraços foram exagerados, mas seguramente eu estava vivendo os mais belos e os mais felizes momentos da minha vida!
“A felicidade é uma coisa estranha e esquisita, das vezes nos visita somente para provar que ela existe”, e assim foi...
Convidaram-me para ir até determinado barzinho, onde iríamos tratar de assuntos referentes à festa da formatura, mas lá chegando assim que sentei apareceu uma moça que usava trajes curtíssimos, blusa decotadíssima, toda pintada, nunca a tinha visto, inesperadamente se sentou no meu colo, a muito custo consegui me desvencilhar daquela doidice...
Agora, eu, um rapaz surpreendentemente comportado, na sala o meu amor adentra para ministrar mais uma aula, foi quando ela ao abrir a gaveta da sua mesa deparou com alguma coisa estranha que a transmudou, transfigurou e entristeceu...
Calmamente ela de mim se aproximou:
— Deixaram na minha gaveta, mas isto te pertence...  
E me entregou uma fotografia, e nela claramente via aquela moça aloucada no meu colo sentado, me abraçando...
— Posso explicar?
— Não há necessidade de explicações, a foto por si explica tudo...
Nunca mais a professora olhou nos meus olhos, se ela tivesse uma mínima oportunidade certamente teria me reprovado na sua matéria, tentei de todas as maneiras lhe explicar o acontecido, mas tudo em vão, seguimos os nossos caminhos, ela com a sua mágoa e eu com a minha dor, foi quando me lembrei do filósofo alemão Nietzsche que dizia...
“Na vingança e no amor a mulher é mais cruel que o homem”...
Que paradoxo! Eu que queria tanto voltar pra casa, agora que estou voltando, sinto que não mais quero voltar, todavia tenho que voltar, pedaços meus vão ficar aqui... Para sempre...
Ao ouvir aquela música, do fundo da minha alma doces recordações do tempo da universidade descontroladamente avivam e ganham cores na minha mente, meus colegas, meus professores, meus amigos da Turma da Bomba D’água, mas são as lembranças daquela moça as que mais pesam alma minha adentro, as que mais me entristecem, mas também as que mais me alegram...
Assim os anos foram passando e da professora sempre me lembrando, longe dela me sentia o mais infeliz dos infelizes, quantas vezes juntava forças e coragem para procurá-la, mas ao lembrar que ela implorou para que eu nunca mais a procurasse, que a esquecesse de uma vez por todas, um vendaval de tristeza e desanimo açoitava a minha alma imobilizando-a por completo...
Mas ela nunca deixou de povoar os meus sonhos, das vezes contemplava a minha desgraça e sorria amargamente para os meus pensamentos delirantes, bobeiras e mais bobeiras, sonhos impossíveis, sonhava com ela nos meus braços, abraços apertados, beijos prolongados...
Suspiros...
E mais suspiros...
Foi quando recebi um convite para as comemorações dos cinco anos da nossa formatura, confirmei a minha presença, e no dia da festa, à noite, cheguei atrasado, quase todos meus antigos colegas estavam presentes, vários professores, a turma da Bomba D’água, ansioso, com o olhar procurei-a por todos os cantos do salão, mas tudo em vão, para a minha tristeza e desespero não a encontrei, fazer o que? Refleti, talvez ela nem se lembre mais de mim, talvez até já tenha se casado, cabisbaixo, tentando enganar a mim mesmo concluí... “Esta infelicidade não vai durar a vida inteira, outro amor eu hei de encontrar” e fui abraçando e sendo abraçado por tantos e entre sorrisos e lágrimas...
Você se lembra disto, se lembra daquilo, bebidas rolando, uns dançado, mas o bom mesmo era a algazarra causadas pelas pitorescas recordações de acontecimentos marcantes, lá pelas tantas da noite, quando o cansaço já tomava conta de todos eis que ela adentra ao recinto da festa, linda, meigamente linda, muito linda, toda sorridente, minha querida professora, minha paixão, meu único e verdadeiro amor, mas para minha decepção chegou abraçada com um rapaz desconhecido, me amaldiçoei de mil maldições por ter vindo a este encontro, neste momento eu queria mesmo é me esconder debaixo de alguma mesa, ela a todos cumprimentando e abraçando, foi quando notei que todos os olhos estavam voltados para mim, aquilo me sufocou, minha boca secou, meu corpo tremulava, mal se sustinha, e ela foi se aproximando...
Aproximando...
Aproximando...
Quando finalmente me estendeu a mão, nossos braços se abraçaram, e voltaram a se abraçar, por fim consegui perguntar se tudo estava bem, ela sorrindo, devia estar sorrindo do meu desespero, disse que estava com saudades de toda aquela turma. Ela se misturou na multidão, frustrado, me refugiei num canto qualquer, não tenho o hábito de ingerir bebidas alcoólicas, mas foi nelas que procurei o alivio para a minha derrota, um consolo para a minha desgraça, depois de algum tempo já completamente embriagado comecei a declamar a minha desventura, quando algo inesperado aconteceu, não me lembro da maneira exata do acontecido, mas só sei que ela sorrateiramente de mim se aproximou e disse:
— Por tanto tempo esperei pela sua volta, e você não voltou, por tanto tempo esperei por um telefonema seu, e você não telefonou, esperei por uma mensagem, e esta mensagem não chegou, agora o tenho perto de mim e você não me diz nada?
Com imensas dificuldades consegui falar:
— E aquele rapaz?
— Que rapaz?
— Aquele que você entrou abraçado na festa?
— Deixa de ser ciumento, aquele rapaz é o professor que me substituiu na Faculdade, é meu amigo, e o que tem demais abraçar um amigo!
— Caramba, então toda essa minha bebedeira foi em vão? Mas você não precisava entrar na festa tão agarrada naquele sujeito!
E a turma me desafiava para que falasse aquilo que todos esperavam!
— Vamos, desembucha companheiro, a hora é agora, e não terá outra oportunidade igual a esta pelo resto da sua vida!
Empurraram-me para bem perto dela, ficamos de mãos dadas, mal conseguia me equilibrar, a cabeça girava, o corpo tremulava, foi quando tive um momento de lucidez, ajoelhei e segurando ternamente em suas mãos, olhei para os seus olhos e gaguejei:
— Caaaaasa cooomigo!
Ela soltou das minhas mãos, olhou para a multidão silenciosa que aguardava o desfecho daquele drama, olhou para mim...
Sorrindo, toda feliz, retrucou:
— Lembra-se daquela foto? Eu ainda hoje a tenho nas minhas lembranças, mas há muito tempo eu já te perdoei, perdoei porque sei o quanto te amo. Ao te ver meu coração recuperou a antiga felicidade e se fez em festas e alegrias, eu aceito o seu pedido de casamento! Mas tem uma condição, vamos agora até a minha casa e você pede aos meus pais autorização para casarmos, e este casamento terá que ser realizado dentro de no máximo trinta dias!
— Trinta dias?
— Trinta dias sim senhor!  Já passei dos trinta anos, e não pretendo perder mais tempo com namoro e noivado, quero ter muitos filhos...
A festa foi interrompida, aqueles colegas, muitos, nos acompanharam até a casa dela, e aí que o vexame ficou pior, na entrada tropecei em um tapete e estatelei na sala caindo aos pés dos meus futuros sogros, graças à ajuda de meus amigos consegui ficar de pé, cambaleando e com uma voz melosa disse boa noite aos pais dela, que surpresos não estavam entendendo nada do que estava acontecendo.
E um engraçadinho foi logo avisando que eu estava ali para um pedido de casamento! E a minha futura sogra abriu a boca:
— Minha querida filha você perdeu o juízo, ficou louca, vai casar um traste deste, um pingaiada, se solteiro já bebe assim, imagine quando casar, ficará pior!
— Mamãe, tenha um pouco de paciência depois eu explico tudo!
— Minha filha escuta sua mãe pelo amor de Deus, acorda, se livra desta tentação, o que foi que você achou neste pinguço, na certa também não gosta de trabalhar, você vai ter que sustentá-lo pelo resto da sua vida, você será uma mulher infeliz ao seu lado!
— Mamãe, papai, o deixe falar, por favor!
E o pai dela, um senhor de barriga saliente, ar de bonachão, sorria daquela palhaçada pelos cantos dos olhos, finalmente abriu a boca:
— Minha querida filha é este rapaz com quem você deseja casar?
— Sim papai!
—  Se é este o seu desejo, se é esta a sua decisão, eu respeito e acato, mas fique sabendo ao que tudo indica você fez uma péssima escolha, melhor morrer solteira do que mal casada, e não diga que não te avisamos, depois será tarde, muito tarde para lamentar, vamos rapaz, fale, desembucha de uma vez por todas, somos todos ouvidos!
Fez-se um silêncio sepulcral dentro daquela casa, dava para ouvir o ronco dos automóveis lá na rua, lágrimas escorriam pela minha face, sou assim, quando emocionado lágrimas escorrem e não consigo contê-las, e a turma torcendo  para que eu conseguisse destramelar a língua, que falasse e  falei, molemente, mas consegui gaguejar:
— Antes de tudo eu queria pedir desculpas pela minha maneira desastrada de entrar em vossa casa, acreditem, eu não sou o que estão vendo, sou um rapaz responsável e trabalhador, quero lhes dizer que sou completamente apaixonado pela sua filha, que ela foi, é, e será sempre o amor da minha vida, e que serei feliz somente se ela estiver ao meu lado, assim sendo, com todo o respeito eu gostaria de pedir a sua filha em casamento!
Casamento marcado, voltamos para o salão e a festa continuou madrugada afora até o dia clarear...  
Casamos, com o tempo tornei o genro querido dos meus sogros, minha esposa encheu a casa de filhos, os filhos cresceram, formaram, debandaram, cada um seguiu seu caminho, e o tempo passou tão de repente, envelhecemos e ainda hoje estamos apaixonados, e ela continua recebendo flores no dia do seu aniversário, mas o que mais gostamos é de relembrar o nosso passado, dos nossos momentos de tensão, de alegrias, de tristezas... São estas coisas que dão um colorido especial em nossas vidas!
Com toda razão está quem diz...
“ Deus escreve o certo pelas linhas tortas”.

Autor: Magnu Max Bomfim - Igarapava/SP

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Quem come galinha choca perde os pelos das sobrancelhas

Autor: Geraldinho do Engenho

Sou um pequeno comerciante há quase meio século, embora já aposentado não consiga me privar do convívio de minha clientela. Toda profissão tem lá seus dissabores, mas o prazer de servir para quem ama a profissão supera tudo.  E a amizade nos gratifica mais que qualquer ganho financeiro. Têm clientes dos mais variados comportamentos, um fator que exige habilidade para tratar cada um, no seu modo ser; cliente meneado, brincalhão, chato, agradável, inconveniente, divertidos etc. Às vezes o caboclo tem pouca leitura, mas é bem informado e encontrando alguém capaz de lhe dar atenção torna-se um verdadeiro cômico.
Cavanhaque é meu cliente a mais trinta anos. É o roceiro mais bem informado, que já conheci. Todo acontecimento que esta na mídia ele Sabe discutir, e tem uma opinião formada, é tão bem conceituado como qualquer especialista no assunto.
A pouco em minha loja conversando com um vendedor que dizia das dificuldades enfrentadas com a pensão de duas ex-esposas, o Cavanhaque logo palpitou.
 – Então ocê não sabe da ultima? Neste caso a solução agora é desossar elas rapaz !
O moço achando graça na sua conversa bateu um longo papo com ele,horrorizados, com  respeito dos acontecimentos bárbaros ocorridos com várias mulheres nos últimos tempos.
No final nós todos nos divertimos com a história contada por ele, quando trabalhou como retireiro no sitio de um padre, nosso conterrâneo.
O padre sempre ia ao sitio com alguns colegas. Habituado a jogar baralho e comer galinha com arroz.
Certo dia Cavanhaque recomendou sua mulher, à cozinheira:
 - olha quando o padre pedir para preparar a galinha, ocê pegue aquela que esta aperreada La na varanda!  Já ouvi dizer que galinha choca é tiro que queda pra cair os pêlos das sobrancelhas e pestanas; vai testar esse negócio com o padre pra ver se é verdade!
- Têm muitos anos sô! Até hoje quando encontro com o padre, eu fito olhos nele pra ver se deu certo, mas é pura mentira cai coisa nenhuma!

Autor: Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O papagaio rezador

Meu querido compadre era conhecido como Zé do Meio. Carreiro dos bons veio morar de agregado, na fazenda de meu pai, lá pelo século passado por volta do ano de 1955.
Papai era apaixonado pelos animais pintados em branco e preto, cuja cor era conhecida como baietona. Zé, amansou várias juntas de bois, com as quais desempenhava com grande capacidade o papel de carreiro.
Substituiu outro carreiro, que após prestar serviços por muitos anos mudou-se para Goiás, o saudoso Vicente Roque, que me carregou no colo muitas vezes, agradando–me com as mais deliciosas balas doces, que chupei em toda a minha vida. Dois grandes amigos. Vicente me viu nascer, Zé do meio me viu crescer. Mais tarde tornamos amigos e compadres, íntimos, e confidentes. Ensinou-me muitos trabalhos braçais. Construiu minha primeira casa residencial, ele como pedreiro, e eu como servente. Além de carreiro, exercia a profissão de pedreiro. Contador de anedotas das mais cabeludas. Contava sempre as aventuras de um papagaio, danado de sabido, de propriedade de um fazendeiro onde, ele, Zé Meio fora criado. O papagaio muito sabido, em um dia de festa na fazenda, entrou para o banheiro, ventava muito e a porta se fechou. Um caboclo meio grogue querendo usar o banheiro batia na porta o cravo dizia: - tem gente! Daí a pouco o caboclo voltava, o mesmo ritual era repetido pelo cravo. Já de saco cheio o caboclo perdeu a paciência, meteu o peito na porta e entrou. O papagaio deu um berro de toda altura: – que bonito em seu tonto... E se eu estivesse cagando? – O cara pê da vida, pegou o papagaio torceu ele bem torcido e enfiou dentro da descarga de um caminhão estacionado no curral da fazenda. Algum tempo após, o papagaio voltou em si, começou a movimentar, muito tonto foi saindo aos poucos. Um grupo de jovens conversava por ali, quando um deles exclamou: - veja que troço engraçado saído deste cano de descarga! – Troço não... Cara... Eu sou mecânico dessa bosta, aqui... Veja como fala comigo chiem!
Tempos depois o patrão mudou-se para cidade. O papagaio tornando-se cada vez mais eficiente em seu aprendizado. Aprendeu a rezar e cantar os cânticos das procissões.
Descuidaram dele, suas asas cresceram, um belo dia ele fugiu. Passado um ano, mais ou menos, uma grande surpresa tomou de assalto à cidade, em coro sobrevoado, um bando de papagaios cantava o pai nosso na frente outro bando, um pouco atrás respondia exatamente como de costume nas procissões das grandes festas realizadas na cidade.
Segundo meu compadre o papagaio fujão evangelizou milhares de outros, que veio homenagear a padroeira da cidade.

Autor: Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG

domingo, 16 de outubro de 2016

¨Escrever talvez seja tornar tangíveis os entrelaçados fios do pensamento. Daí, surge a necessidade de criar histórias e sentimentos em forma de letras. Contá-las é um modo de entreter e viver outras vidas, por meio de cada personagem. Há semelhanças em se tratando de escrita, mas a maneira de apresentar cada fato, muda de uma narrativa para outra, fazendo a diferença entre ser ou não ser lido. Com certeza, a literatura ainda é essencial para muitos, ou seja, um prazer sem explicações. É um universo onde se pode colocar vida e expressar opiniões¨.

Blog Gandavos
Recife PE

Autor: João Batista Stabile

Eu sou casado e tenho um filho de doze anos, nasci em 28 de abril de 1961, em Presidente Alves interior de São Paulo, numa fazenda de café onde morei e trabalhei na lavoura até 1982 quando mudei para cidade e fui trabalhar em outra fazenda de café, onde fui escriturário e depois administrador. Parei de estudar em 1979 quando concluí o ensino médio como é chamado hoje.
Em 1989 mudei para Marília também interior de São Paulo onde moro e trabalho como Funcionário Público Estadual, em 1999 depois de vinte anos longe das salas de aula, ingressei no curso de Ciências Sociais pela UNESP – Universidade Estadual Paulista, concluindo em 2003, bacharelado e licenciatura.

Pergunta 1 - Quando e como surgiu seu interesse pela leitura e escrita?
Resposta - Enquanto eu trabalhava na zona rural não tinha tempo e nem interesse em ler, só depois de alguns anos trabalhando no estado já com mais de trinta anos, passei a interessar-me pela leitura. Quanto a escrever foi em 2010, já com quarenta e nove anos com um filho com seis anos, pensei em escrever como era nossa vida na fazenda, como as crianças e jovens viviam naquela época, as diversões, as dificuldades, enfim o cotidiano da vida rural nos anos sessenta e setenta, para que meu filho depois de grande lesse e tivesse uma ideia de como era nossa vida sem a televisão, computador, internet, celular e brinquedos eletrônicos.
Escrevi alguns textos e parei por um tempo, em 2012 por acaso encontrei o site Recanto das Letras e decidi publicar um texto, vendo os comentários das pessoas que leram, principalmente dos colegas do Recanto fiquei animado e escrevi outros. Quero registrar aqui que no Recanto das Letras a primeira pessoa que leu meu texto e fez um comentário carinhoso foi a amiga Maria Mineira, depois vieram outros que ela leu e sempre tinha uma palavra de incentivo, o que ajudou-me a continuar escrevendo.
Pergunta 2 - Quais foram seus livros preferidos quando era criança e os livros favoritos atualmente?
Resposta – Quando eu era criança não lia, na juventude só li os livros de leitura obrigatória para fazer trabalho valendo nota. Destes eu gostei muito de “A Ilha Perdida” de Maria José Dupré e “O Cortiço” de Aluísio Azevedo, depois de adulto os li novamente agora por prazer.
Quando comecei o gosto pela leitura eu li vários livros de José Mauro de Vasconcelos, José de Alencar, Francisco Marins, depois com o tempo muitos outros autores brasileiros como, Machado de Assis, José Lins do Rego, Erico Veríssimo, Jorge Amado, Aluísio Azevedo, Graciliano Ramos, alguns de Rubens Alves e somente “Grande Sertão Veredas e Sagarana” de Guimarães Rosa. Dos estrangeiros eu li Eça de Queirós, Dostoiévski, Tolstói, Charles Dickens, Zola e outros. Atualmente eu gosto de romances e contos nacionais ou estrangeiros.
Pergunta 3 - Quais escritores são suas fontes de inspiração?
Resposta – Quando comecei a pensar em escrever a leitura desses autores que citei e outros, ajudaram a amadurecer a ideia mas o que me inspira são as lembranças do passado, o cotidiano de uma vida simples, principalmente a rural que se perdeu com o avanço da tecnologia e a globalização.
Pergunta 4 - De que forma o conhecimento adquirido, seja pelo senso comum, ou pelo meio acadêmico, ajuda na hora de escrever?
Resposta – Eu penso que o conhecimento acadêmico pode dar a base e até moldar a forma de escrever, mas o conhecimento adquirido pelo senso comum é a bagagem necessária ao escritor, sem esta não é possível escrever.
Pergunta 5 - Segundo o escritor Rubem Fonseca, “a leitura, a palavra oral é extremamente polissêmica. Cada leitor lê de uma maneira diferente. Então cada um de nós recria o que está lendo, esta é a vantagem da leitura". É isso mesmo? Concorda com essa proposição?
Resposta – Concordo. O interessante da leitura é isso a possibilidade de viajar na imaginação, dar características aos personagens e cenários conforme os nossos conhecimentos e ler nas entrelinhas o que o autor deixou implícito no texto.
Pergunta 6 - Ainda segundo o Escritor Rubem Fonseca: “um escritor tem de ser louco, alfabetizado, imaginativo, motivado e paciente.” É o suficiente para ser um bom escritor?
Resposta – O escritor tem que ser alfabetizado, claro não tem como escrever se não for alfabetizado, motivado também, pois a motivação leva a imaginação necessária para escrever e paciente porque nem sempre as coisas saem como imaginamos.
Pergunta 7 - Para qual público se destina sua criação?
Resposta – Escrevo para pessoas comuns que tenha a capacidade de se encantar com as coisas simples da vida.
Pergunta 8 - Como funciona o seu processo de criação? Quais sãos suas manias (ritual da escrita)?
Resposta – Não sigo um ritual fixo para todos os textos, as vezes passa tempo sem ter uma inspiração, de repente uma cena, uma conversa, uma lembrança de um caso acontecido ou contado por alguém, surge uma ideia, aí sento e escrevo ou acontece também de ter uma ideia, aí fico pensando formando mais ou menos o texto na cabeça só depois sento para escrever. Mas nos dois casos eu escrevo tudo de só uma vez, conforme vem à cabeça, depois no mesmo dia ou no outro vou relendo, acrescentando alguma coisa, tirando outra, trocando palavras até ficar do meu gosto.
Pergunta 9 - Em geral, os seus personagens são baseados em pessoas que você conhece, ou são ficcionais?
Resposta – Os personagens dos contos que escrevi são baseados em pessoas que conheci, nos causos são ficcionais mas alguns destes tem características de pessoas conhecidas.
Pergunta 10 - Você tem outra atividade, além de escrever?
Resposta – Sou Funcionário Público Estadual e junto com minha esposa e meu filho fazemos alguns trabalhos voluntários na paróquia que frequentamos aqui em Marília, leio bastante e o pouco que escrevo é somente por prazer.
Pergunta 11 - Você faz parte das Coletâneas Gandavos. Qual a sensação de participar ao lado de escritores de várias regiões do país?
Resposta – Não. Mas gostaria muito de um dia fazer parte das Coletâneas Gandavos, tenho certeza que será uma experiência muito gratificante estar ao lado desses escritores, entre eles tem vários que conheço e admiro muito.
Pergunta 12 - O financiamento coletivo e a publicação independente têm se mostrado a opção das publicações Gandavos.  Quais são os pontos positivos e negativos desse tipo de publicação?
Resposta – Mesmo não tendo participado creio que não existe pontos negativos, o financiamento coletivo é uma forma de divulgar o trabalho do autores desconhecidos por um baixo custo, o que é interessante para todos.
Pergunta 13 – Você já fez publicação de livros sozinho, seja impresso ou virtual? Quais e como o leitor pode adquiri-los?
Resposta – Não.
Pergunta 14 - Qual mensagem você deixaria para autores iniciantes, com base em suas próprias experiências?
Resposta - Se você gosta de escrever, escreva se receber uma crítica aprenda com ela, se receber um elogio, procure melhorar ainda mais e lembre-se pode ter muita gente que não goste do que você escreveu, mas sempre tem alguém que vai gostar.

O puxador de terços

Meu pai muito católico mariano, desde jovem era rezador de terços (como diziam puxar o terço) nas fazendas onde morou. Ele contava algumas histórias acontecidas em tempos idos.
Contou-nos que uma vez foi chamado para rezar um terço numa fazenda vizinha, chegando viu a casa estava cheia de convidados, famílias vizinhas e muitas moças solteiras e ficou com vergonha, então chamou o dono da casa de um lado sozinho e disse, : “a casa está cheia de moças, estou um pouco  envergonhado, o senhor não  tem ai uma pinguinha para eu tomar um trago pra dar coragem?”. E o homem respondeu:  “sim tenho, vamos lá no quarto”. Foram os dois discretamente, ele tomou uma boa dose de cachaça, esperou um pouco e veio para sala começar o terço.
Dizia ele que o terço foi uma beleza, puxava muito animado e o povo respondia, inclusive as moças participavam bastante, vendo o seu desembaraço foram também contagiadas e todos deixaram de lado a timidez, rezando e cantando.
Essa aconteceu já na fazenda que fomos criados, mas quando era solteiro, depois que sua mãe morreu ele ficou morando sozinho, tinha como companhia um cachorro chamado piloto que não o deixava por nada. Uma noite sendo chamado para rezar em outra colônia que ficava bem afastada, chamada de porteira azul, devido a cor de uma porteira de madeira que tinha à sua entrada.
Quando saía para cidade ou ia para longe o cachorro ficava apenas olhando deitado no quintal da casa. Mas aquela noite o piloto quis acompanha-lo, não houve meio de evitar que fosse, então deixou-o mas ficou preocupado pois naquela colônia havia muitos cachorros e certamente haveria brigas.
Chegando à porteira meu pai teve uma ideia, havia do lado do mourão um pequeno arbusto, então pegando seu chapéu colocou em cima, mostrou ao cachorro e disse, piloto deita aí, o cachorro obedeceu ficou ali esperando.  
Rezou o terço, conversou com os amigos depois foi embora, chegando ao local, estava lá deitado o cachorro esperando-o, pegou o chapéu, agradou o piloto que o seguiu alegremente para casa.
Meu pai conheceu minha mãe também moradora da fazenda, casaram-se e viveram lá por trinta anos, todo esse tempo continuou sendo ele o rezador de terços.
Lembro-me quando era criança que muitas vezes ele saía à noite, dizendo que ia rezar um terço na casa de fulano, quando era longe porque a fazenda era grande ele ia a cavalo.
Naquela época tinha muitos terços durante o ano, fora aqueles em dias de festa, muitos a minha mãe e nós também íamos, depois de uma idade íamos mesmo que ela não fosse.
Chegando lá sempre já tinha alguns vizinhos que ficavam conversando com os donos da casa e nós brincando com as crianças até chegar todos os convidados ou pelo menos, dava o tempo para que todos chegassem.
No horário marcado chamavam as crianças para dentro reuniam todos na sala, meu pai colocava um óculos pegava um livrinho velho e lia com alguma dificuldade porque a luz era fraca e ele não tinha pratica de leitura.
Quando era segunda ou quinta feira rezavam-se os mistérios gozosos, terça ou sexta feira mistérios dolorosos, quarta, sábado ou domingo mistérios gloriosos.
Ele puxava o terço e o povo respondia, cantava um hino e todos cantavam juntos, no final era a ladainha eram tantos rogai por nós, que nós crianças achávamos que não acabaria nunca.
Terminado o terço era sempre servido um café ou chocolate, vinha uma pessoa da casa carregando uma bandeja com um bule e algumas xícaras, vez ou outra até serviam um pedaço de bolo.   
Tinha uma época que o povo fazia novenas, eram terços todas as noites, por noves dias, e nós crianças durante o dia ficávamos comentando sobre isso e discutíamos o que seria servido.
Antigamente parece que as pessoas eram mais religiosas e o catolicismo prevalecia, dificilmente encontrava-se uma família protestante.   
Onde morávamos havia apenas uma, nós crianças não entendíamos aquela diferença e víamos algo de misterioso naquela família, tanto é que quando íamos nas casas das colônias a mando das mães para convidar para o terço, passávamos distante e bem rápido em frente à casa deles, quase com medo que nos visse.
Esta passagem não tem nada a ver com terços, mas meu pai contou-nos que ainda no seu tempo de solteiro, aos sábados à noite quando não tinha terço nem baile, iam à cidade passear encontrar com os amigos e aos domingos alguns iam a missa. Numa dessas idas a cidade, na volta aconteceu um fato, no mínimo curioso.
Tinha três caminhos para a cidade, a estrada que saía da sede da fazenda, um trilho no meio do pasto que chegava a duas colônias e uma outra estrada que saía por uma colônia, chamada colônia nova e ia direto até a cidade.
Vindo da cidade para a fazenda, antes de chegar a tal colônia nova, havia um pau d’alho que todos diziam que era mal assombrado e em seguida uma pesada porteira de madeira.
Foi por essa estrada que ele voltava da cidade numa noite de sábado já de madrugada. Noite enluarada sem nenhum vento, ar parado, não se via mover nenhuma folha das árvores ou moitas de capim nas margens da estrada. Quando ele passava em frente ao pau d’alho a porteira abriu lentamente, ele arrepiado, tremendo passou e ela fechou da mesma forma sem bater, encostou suavemente ao mourão.
Mas meu pai não era só rezador, também tinha outras funções que ele executava eventualmente como voluntário, tosava e cortava cascos de cavalos e ainda uma que é inimaginável nos dias de hoje, aplicava injeções.
Geralmente o pessoal quando precisava iam à farmácia, dificilmente procuravam o médico só quando não tinha mesmo jeito. Havia na pequena cidade um farmacêutico que muitos costumavam dizer, (sabe mais que alguns médicos), assim recorriam a ele, dependendo do caso vinham com injeções.
Quem precisasse ia em casa à noite, se o doente não pudesse andar ou fosse pessoa muito idosa, meu pai ia até sua casa.
Lembro-me ainda pequeno de ver muitas vezes ele preparando injeções, pegava um estojo inox que tinha dentro umas duas seringas e algumas agulhas, pegava as que ia usar, virava a tampa do estojo e enchia com álcool, em cima colocava um suprtezinho de aproximadamente dois centímetros de altura e nele o estojo com água, seringa e agulha dentro, colocava fogo no álcool que até queimar todo fervia água para esterilizar o material.   
Nunca aconteceu nenhum caso de alguém passar mal por causa da injeção, reação ou alergia, apenas passavam medo vendo sua mão grande, grossa e pesada pelo trabalho na roça.
Este texto eu contei um pouco da vida do meu pai, um homem simples que nunca foi um dia numa escola, o que aprendeu foi com o seu pai que tinha algum estudo na Itália, quando veio para o Brasil aprendeu nossa língua e dava aulas para as crianças nas fazendas onde morou, à noite com a luz de lampião. 
Ele aprendeu a ler, escrever e fazer as quatro operações, o suficiente para se virar numa época em que o povo das fazendas eram na sua maioria analfabetos.

Autor: João Batista Stabile - Marília/SP